segunda-feira, 20 de junho de 2016

94 – A célebre rã saltadora do Condado de Calaveras – M.Twain

Samuel Langhorne Clemens (1835-1910) conhecido mundialmente como Mark Twain, nasceu e viveu no Missouri onde se inspirou para desenvolver o cenário de seus grandes romances Huckleberry Finn e Tom Sawyer, e onde ele ouviu a estória que deu origem a este conto, que é um dos contos mais geniais que tive o prazer de ler e reler.

A célebre rã saltadora do Condado de Calaveras
Mark Twain
Atendendo ao pedido de um amigo, que me escrevera de Leste, fui visitar Simão Wheeler, bom homem, sem outro defeito que urna grande loquacidade. Ia pedir-lhe notícias de um tal Leônidas W. Smiley, amigo de meu amigo, como este me recomendara. Cumprida a missão, venho relatar aqui o resultado da visita. Tenho uma vaga desconfiança de que Leônidas W. Smiley não passa de um mito e de que meu amigo não o conheceu senão em pensamento. Penso que ele tenha feito apenas conjeturas, pois falando ao velho Simão Wheeler, este naturalmente se lembraria do infame Jim Smiley, aborrecendo-me com alguma incrível reminiscência dele, não somente longa e fastidiosa, como também inútil para mim. Se foi essa a intenção, não há dúvida de que foi bem sucedido.


Encontrei Simão Wheeler dormindo confortavelmente, junto ao fogão da sala comum, numa velha e arruinada taverna do antigo campo mineiro do Anjo. Observei que ele era gordo e calvo, possuindo uma expressão de urbanidade insinuante e de simplicidade tranquila na fisionomia. Levantou-se e me deu os bons dias. Disse-lhe então que um dos meus amigos me encarregara de lhe fazer algumas perguntas acerca de um querido companheiro de infância chamado Leônidas W. Smiley — o Reverendo. Leônidas W. Smiley, jovem ministro evangélico que, segundo ele ouvira dizer, residira durante algum tempo no campo do Anjo. Acrescentei que se Mr. Wheeler me pudesse dizer alguma coisa sobre ele, os meus agradecimentos e os do meu amigo seriam eternos.


Simão Wheeler colocou-me de costas a um canto da sala e ali me bloqueou com uma cadeira; fez-me então sentar e desenrolou a monótona história que se vai ouvir. Simão Wheeler não sorriu nem se alterou uma única vez; manteve, até o fim, o mesmo tom de voz manso e fluente com que iniciou a narrativa. No entanto, através do interminável raconto, transparecia a seriedade com que ele encarava o assunto. Pude convencer-me de que, longe de ver qualquer coisa de ridículo na sua história, ele a considerava como realmente importante, e admirava os seus dois heróis como homens geniais, sobretudo, quanto à delicadeza de maneiras. Para mim, o espetáculo de um homem deslizando tão serenamente em meio a tão extravagante enredo, sem sorrir uma vez sequer, era perfeitamente absurdo. Como já disse, pedi-lhe que me informasse o que sabia a respeito do Reverendo Leônidas W. Smiley. Deixei-o falar, sem interrompê-lo uma única vez:


Havia aqui um indivíduo conhecido pelo nome de Jim Smiley, no inverno de 1849 — ou talvez na primavera de 50 — não posso recordar exatamente, pois o que me faz crer numa ou noutra data é a lembrança de que o grande canal ainda não estava concluído quando ele apareceu pela primeira vez. Mas, em 49 ou 50, o fato é que ele era o homem mais notável que se pode imaginar. A propósito de qualquer coisa, estava sempre disposto a fazer uma aposta. Era a sua mania. Se não podia levar o adversário para o lado contrário, mudava de opinião. O que ele queria era apostar. Tinha sorte extraordinária: ganhava sempre. Não se podia falar no objeto mais isolado sem que o tal camarada logo sugerisse uma apostazinha, pró ou contra. Se se tratava de uma corrida de cavalos o nosso homem enriquecia ou ficava a nenhum. Se era de luta de cães, apostava; se uma briga de galos, apostava; se estavam dois pássaros pousados numa árvore, queria logo apostar qual dos dois voaria primeiro; se havia reunião no campo era certo apresentar-se a apostar pelo Cura Walker, que ele afirmava ser o melhor pregador da redondeza. Se visse uma barata encaminhar-se para qualquer parte, queria logo apostar para saber quanto tempo ela levaria para chegar ao ponto do seu destino, e se pegassem na sua palavra iria atrás da barata até o México, sem pensar na distância ou no tempo que iria perder.


Ainda vivem inúmeras pessoas que o conheceram e que lhe poderão contar muitos casos sobre ele. O fato é que ninguém jamais notou a mínima diferença no seu estado de ânimo: estava sempre pronto a fazer uma aposta. Uma vez a mulher do Cura Walker esteve muito doente e parecia que não se salvaria. Certa manhã este veio ao campo e Smiley perguntou-lhe por ela. Respondeu-lhe o cura que ela estava consideravelmente melhor — graças à infinita misericórdia do Senhor e que se sentia já tão forte que, com o fervor da Providência, em breve estaria completamente restabelecida. Smiley, sem pensar no que dizia, retrucou-lhe: "Aposto o que quiser como ela não vai melhorar!"


Este mesmo Smiley possuía uma égua a que os rapazes — por brincadeira, está claro — chamavam "Lerdona". A verdade é que ele ganhava seus bons cobres com ela, apesar da sua lerdice e das suas doenças, pois estava sempre. com asma, disenteria, tísica ou qualquer outra coisa parecida. Nas corridas costumavam dar-lhe cem, duzentos ou trezentos metros de vantagem e assim mesmo passavam-lhe adiante sem dificuldade. Mas no fim da carreira ela sempre se excitava, enfurecendo-se e o resultado é que chegava — à custa de coices, corcoveios, de muita poeira levantada e muitos rinchos e roncos — à meta quase sempre em primeiro lugar e pela diferença exatamente de uma cabeça.


Smiley possuía, também, um pequeno "bull-dog" tão insignificante que ao vê-lo não se podia imaginar valesse coisa alguma. Chegava mesmo a parecer um cão que vivia a vaguear à espera de uma oportunidade para roubar qualquer coisa. Bastava, porém, haver dinheiro em lance para que o cão se tomasse outro. O queixo alongava-se como o castelo de proa de um vapor, os dentes brilhantes, ferozes e unidos como as muralhas de uma fortaleza. Qualquer cão podia agarrá-lo e mordê-lo à vontade, girando-o para todos os lados, até pô-lo. em fuga. Andrew Jackson — assim se chamava o "bull-dog" — mantinha-se firme, sem denotar surpresa alguma, até que as apostas se desdobrassem ou multiplicassem. Quando já não havia mais dinheiro para ser jogado, ele, num salto imprevisto, agarrava o adversário pela junta da pata direita e, fincando-lhe os dentes, suspendia-o como que por brincadeira, assim permanecendo, se fosse preciso, um ano inteiro. Smiley ganhava sempre com ele. Um dia, porém, trouxeram um cão que não possuía a pata direita. Quando as coisas estavam no ponto desejado e em apostas todo o dinheiro que havia, Andrew Jackson atirou-se ao ponto predileto, mas viu, num relance, que fora logrado. Parou surpreendido e desorientado, sem fazer o menor esforço para vencer. Dirigiu a Smiley um olhar cheio de lástima, como que para lhe dizer que o seu coração estava partido e que o culpado era ele, por ter colocado à sua frente um adversário sem pata direita. Soltou, depois, um longo e angustiado gemido e, estendendo-se no chão, ali soltou o último suspiro. Era um excelente cachorro o tal Andrew Jackson. Prometia vir a ter um grande nome se vivesse, pois possuía estofo para tanto. Era genial, não há dúvida; as circunstâncias é que não o favoreceram. Concordareis comigo que se requer grande talento para lutar da maneira como ele fazia. Ainda fico triste quando me lembro do seu último combate e do modo como ele terminou. Continuemos, porém.


O tal Smiley possuía galos de briga, gatos bravos e tudo o mais que se pode imaginar no gênero. Ninguém podia permanecer quieto perto dele, pois não era possível apresentar-lhe nenhum objeto de aposta que ele não tivesse logo outro para opor.


Um dia Smiley apanhou uma rã e levando-a para casa nos disse que ia domesticá-la. Durante três meses não fez outra coisa senão ensiná-la a saltar. Dava-lhe. uma pancadinha atrás e logo em seguida via-se a rã dar uma ou duas voltas no ar, segundo o impulso recebido, indo cair lá adiante, sobre as patas, como um gato. Exercitou-a na arte de apanhar moscas e fez desse exercício uma prática tão constante que as moscas, por mais longe que passassem, eram logo abocanhadas. Smiley costumava dizer que às rãs faltava somente a educação e que, uma vez educadas, seria possível fazer com elas o que bem quiséssemos. Não uma, mas inúmeras vezes vi Daniel Webster — era o nome da rã — exibir as suas habilidades. Smiley dizia-lhe:


— Moscas, Daniel. moscas!


Num abrir e fechar de olhos Daniel dava um pulo, apanhava 11 moscas, e punha-se a coçar a cabeça com uma das pernas traseiras, como se não tivesse a menor ideia de ter realizado uma proeza superior a qualquer outra rã. Não há memória de se ter visto rã tão modesta e simples, levando-se em conta, está claro, os extraordinários dotes do que ela era dotada. Quando se tratava de avançar em terreno plano, dava pulos de que nenhum outro animal da sua espécie seria capaz. O salto para a frente constituía o seu forte. Neste caso Smiley apostava nela todo o dinheiro que possuía no momento. Tinha um monstruoso orgulho da sua rã, e nada mais razoável do que isso, porque pessoas que tinham viajado e visto inúmeras coisas, ao chegarem ali, ficavam boquiabertas.


Smiley guardava a rã numa gaiola e frequentemente a levava à cidade para apostas.


Um dia, um indivíduo — estranho ao lugar — vendo-o com a gaiola perguntou-lhe:


— Que diabo levas aí?


Smiley respondeu-lhe, com grande indiferença:


— Isto podia ser um papagaio ou um canário, mas não é; é simplesmente uma rã.


O outro pegou na gaiola, olhando-a por todos os lados atentamente e depois lhe disse:


— É verdade! E para que serve esse animal?


— Para que serve? Para muitas coisas. Pode bater, no salto, toda e qualquer rã do condado de Calaveras.


O outro torna a pegar na gaiola, examina-a com todo o cuidado e, restituindo-a ao dono, exclama com ar decidido:


— Já vi! E não creio que esta rã seja melhor ou pior de que qualquer outra.


— É possível, — respondeu Smiley. — Talvez o senhor entenda muito do assunto, ou talvez não entenda nada. Tenho, porém, minha opinião e aposto quarenta dólares em como esta rã será capaz de bater, no salto, qualquer outra rã do condado de Calaveras.


O outro esteve a meditar um instante depois disse com ar de tristeza:


– Pois bem: sou estrangeiro e não trago comigo nenhuma rã. Mas se tivesse uma aceitaria a aposta.


— Tudo se arranja, tudo se arranja, respondeu Smiley. Se quiser segurar a gaiola por um instante, irei buscar-lhe uma rã.

O estrangeiro toma a gaiola, coloca seus quarenta dólares sobre os de Smiley e senta-se, para esperar.


Como Smiley tardasse, teve tempo para pensar sobre o caso. E imagine do que foi ele se lembrar!... Agarrou Daniel, abriu-lhe a boca com uma colher de chá, encheu-lhe o bucho de chumbo e, depois de enchê-la bem, colocou-a novamente no chão. Smiley, durante esse tempo, esteve a patinhar no charco, até que por fim conseguiu apanhar uma rã, trazendo-a ao seu adversário:


— Agora, se está pronto coloque-a ao lado de Daniel, com os pés dianteiros na mesma linha. Eu darei o sinal.

Em seguida, gritou:


— Um, dois, três — salta. — E tanto Smiley como o estrangeiro tocaram, cada um, sua rã, para dar-lhes o impulso inicial. A nova rã saltou vivamente, mas Daniel limitou-se a soltar um gemido e, por mais esforços que fizesse, não conseguiu sair do lugar. Não podia mover-se. Estava cravada na terra mais solidamente do que uma catedral. Era como se estivesse ancorada. Smiley estava surpreendido e desgostoso, mas não desconfiava de coisa alguma.


O estrangeiro apanhou o dinheiro e preparou-se para ir embora, mas ao partir, com um ar impertinente, ainda murmurou:


— Não vejo no que esta rã é melhor do que as outras.


Smiley permaneceu um tempão a coçar a cabeça, com os olhos fitos em Daniel, até que por fim disse:


— Não posso explicar como diabo é que esta rã se recusa a saltar... A não ser que tenha alguma coisa... Doente, não está... Parece isto sim, mais gorda...


Agarra, então, Daniel, pela pele do pescoço e ao levantá-la exclama:

— Os diabos me levem se ela não pesa cinco libras...


Voltou-a de cabeça para baixo e a infeliz vomitou duas mãos cheias de chumbo. Quando Smiley percebeu o que sucedera, ficou como louco. Pôs a rã no chão e desatou a correr à. procura do estrangeiro mas não pôde alcançá-la. E...


Neste ponto da sua narrativa, Simão Wheeler ouviu que o chamavam e foi ver quem era. Antes disso, porém, voltou-se para mim, dizendo:

— Espere-me um instante, que não tardarei...


Mas, com licença de quem me ouve, não me pareceu que o resto da história de Jim Smiley pudesse trazer algum discernimento a respeito do Reverendo Leônidas W. Smiley e por isso tratei, também, de sair.


À porta, encontro o amável Simão Wheeler, que, segurando-me pelo braço, recomeçou:


— Pois este Smiley possuía uma vaca amarela, muito gorda, cega de um olho e sem rabo, isto é...



— Oh! Mande Smiley e sua vaca amarela para o inferno - resmunguei eu. E, desejando-lhes boas tardes parti.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

93 – Os nove bilhões de nomes de Deus – A. C Clarke

Arthur C. Clarke (1917-2008), autor britânico de ficção cientifica, mundialmente conhecido por ter escrito o roteiro para 2001, uma odisseia no espaço. O conto “Os nove bilhões de nomes de Deus” publicado em 1953, frequentemente aparece em listas como um dos melhores contos de ficção científica de todos os tempos.  

Os nove bilhões de nomes de Deus
 Arthur C. Clarke

— Este é um pedido um tanto incomum — disse o doutor Wagner, com o que esperava ser um comentário plausível. — Que eu recorde, é a primeira vez que alguém pediu um computador para um monastério tibetano. Eu não gostaria de me mostrar inquisitivo, mas me custa pensar que em seu. . . hum. . . estabelecimento haja aplicações para semelhante maquina. Poderia me explicar o que tentam fazer com ela?
— Com muito prazer — respondeu o lama, arrumando a túnica de seda e deixando cuidadosamente a um lado a régua de cálculo que tinha usado para efetuar a equivalência entre as moedas. — Seu computador Mark V pode efetuar qualquer operação matemática rotineira que inclua até dez cifras. Entretanto, para nosso trabalho estamos interessados em letras, não em números. Quando tiverem sido modificados os circuitos de produção, a maquina imprimirá palavras, não colunas de cifras.
— Não compreendo. . .
— É um projeto em que estivemos trabalhando durante os últimos três séculos; de fato, desde que se fundou o lamaísmo. É algo estranho para seu modo de pensar; assim espero que me escute com mentalidade aberta enquanto o explico.
— Naturalmente.
— Na realidade, é muito singelo. Estamos fazendo uma lista que conterá todos os possíveis nomes de Deus.
— O que quer dizer?
— Temos motivos para acreditar — continuou o lama, imperturbável — que todos esses nomes se podem escrever com não mais de nove letras em um alfabeto que idealizamos.
— E estiveram fazendo isto durante três séculos?
— Sim; supúnhamos que nos custaria ao redor de quinze mil anos completar o trabalho.
— Oh! — exclamou o doutor Wagner, com expressão um tanto aturdida. — Agora compreendo por que quiseram alugar uma de nossas maquinas. Mas qual é exatamente a finalidade deste projeto?
O lama vacilou durante uma fração de segundo e Wagner se perguntou se o tinha ofendido. Em todo caso, não houve indicação alguma de zanga na resposta.
— Chame-o ritual, se quiser, mas é uma parte fundamental de nossas crenças. Os numerosos nomes do Ser Supremo que existem: Deus, Jeová́, Alá, etecetera, são apenas etiquetas feitas pelos homens. Isto encerra um problema filosófico de certa dificuldade, que não me proponho discutir, mas em algum lugar entre todas as possíveis combinações de letras que se podem fazer estão os que se poderiam chamar verdadeiros nomes de Deus. Mediante uma permutação sistemática das letras, tentamos elaborar uma lista com todos esses possíveis nomes.
— Compreendo. começaram com o AAAAAAA. . . e continuaram até o ZZZZ- ZZZ...
— Exatamente, embora nos utilizemos um alfabeto especial próprio. Modificando os tipos eletromagnéticos das letras, arruma-se tudo; e isto é muito fácil de fazer. Um problema bastante mais interessante é o de desenhar circuitos para eliminar combinações ridículas. Por exemplo, nenhuma letra deve figurar mais de três vezes consecutivas.
— Três? Certamente quer você̂ dizer dois.
— Três é o correto. Temo que me ocuparia muito tempo explicar porque, mesmo que você entendesse nossa linguagem.
— Estou seguro disso — disse Wagner, apressadamente — Siga.
— Por sorte, será coisa singela adaptar seu computador a esse trabalho, posto que, uma vez sendo programado adequadamente, permutará cada letra por turno e imprimirá o resultado. O que nos demoraria quinze mil anos se poderá́ fazer em cem dias.
O doutor Wagner ouvia os débeis ruídos das ruas de Manhattan, situadas muito abaixo. Estava em um mundo diferente, um mundo de montanhas naturais, não construídas pelo homem. Nas remotas alturas de seu longínquo pais, aqueles monges tinham trabalhado com paciência, geração após geração, enchendo suas listas de palavras sem significado. Havia algum limite às loucuras da humanidade? Não obstante, não devia insinuar sequer seus pensamentos. O cliente sempre tinha razão...
— Não há dúvida — replicou o doutor — de que podemos modificar o Mark V para que imprima listas deste tipo. Mas o problema da instalação e a manutenção já me preocupa mais. Chegar ao Tibete nos tempos atuais não vai ser fácil.
— Nos encarregaremos disso. Os componentes são bastante pequenos para se transportarem em avião. Este é um dos motivos de termos escolhido sua máquina. Se você a pode fazer chegar à Índia, nós proporcionaremos o transporte dali.
— E querem contratar dois de nossos engenheiros?
— Sim, para os três meses que devem durar o projeto.
— Não duvido de que nossa seção de pessoal lhes proporcionará as pessoas idôneas. — O doutor Wagner fez uma anotação na caderneta que tinha sobre a mesa — há outras duas questões. . . — antes de que pudesse terminar a frase, o lama tirou uma pequena folha de papel.
— Isto é o saldo de minha conta do Banco Asiático.
— Obrigado. Parece ser. . . hum. . . adequado. A segunda questão é tão corriqueira que vacilo em mencioná-la. . . mas é surpreendente a frequência com que o óbvio se passa por cima. Que fonte de energia elétrica tem vocês?
— Um gerador diesel que proporciona cinquenta quilowatts a cento e dez volts. Foi instalado faz uns cinco anos e funciona muito bem. Faz a vida no monastério muito mais cômoda, mas na realidade foi instalado para proporcionar energia aos alto-falantes que emitem as preces.
— Certamente — admitiu o doutor Wagner. — Devia havê-lo imaginado.
A vista do parapeito era vertiginosa, mas com o tempo se acostuma a tudo. Depois de três meses, George Hanley não se impressionava pelos dois mil pés de profundidade do abismo, nem pela visão remota dos campos do vale semelhantes a quadros de um tabuleiro de xadrez. Estava apoiado contra as pedras polidas pelo vento e contemplava com displicência as distintas montanhas, cujos nomes nunca se preocupou de averiguar.
Aquilo, pensava George, era a coisa mais louca que lhe tinha ocorrido jamais. O “Projeto Shangri-Lá”, como alguém o tinha batizado nos longínquos laboratórios. Desde fazia já́ semanas, o Mark V estava produzindo acres de folhas de papel cobertas de galimatias.
Pacientemente, inexoravelmente, o computador ia dispondo letras em todas suas possíveis combinações, esgotando cada classe antes de começar com a seguinte. Quando as folhas saíam das máquinas de escrever electromáticas, os monges as recortavam cuidadosamente e as pregavam a uns livros enormes. Uma semana mais e, com a ajuda do céu, teriam terminado. George não sabia que escuros cálculos tinham convencido aos monges de que não precisavam preocupar-se com as palavras de dez, vinte ou cem letras.
Um de seus habituais quebra-cabeças era que se produzisse alguma mudança de plano e que o grande lama (a quem eles chamavam Sam Jaffe) anunciasse de repente que o projeto se estenderia aproximadamente até o ano 2060 da Era Cristã. Eram capazes de uma coisa assim.
George ouviu que a pesada porta de madeira se fechava de repente com o vento, enquanto Chuck entrava no parapeito e se situava a seu lado. Como de costume, Chuck ia fumando um dos charutos puros que lhe tinham feito tão popular entre os monges; parece que eles estavam completamente dispostos a adotar todos os menores e grande parte dos maiores prazeres da vida. Isto era uma coisa a seu favor: podiam estar loucos, mas não eram tolos. Aquelas frequentes excursões que realizavam à aldeia abaixo, por exemplo. . .
— Escuta, George — disse Chuck, com urgência. — Soube algo que pode significar um problema.
— O que aconteceu? Não funciona bem a máquina? — Esta era a pior contingência que George podia imaginar. Era algo que poderia atrasar a volta e não havia nada mais horrível. Tal como ele se sentia agora, a simples visão de um anuncio de televisão lhe pareceria maná caído do céu. Pelo menos, representaria um vínculo com sua terra.
— Não, não é nada disso. — Chuck se instalou no parapeito, o que não era habitual nele, porque normalmente lhe dava medo o abismo. — Acabo de descobrir qual é o motivo de tudo isto.
— O que quer dizer? Eu pensava que sabíamos.
— Certo, sabíamos o que os monges estão tentando fazer. Mas não sabíamos por quê. É a coisa mais louca. . .
— Isso já o tenho ouvido — grunhiu George.
— . . . mas o velho me acaba de falar com clareza. Sabe que acode cada tarde para ver como vão saindo as folhas. Pois bem, esta vez parecia bastante excitado ou, pelo menos, mais do que está acostumado a estar normalmente. Quando lhe disse que estávamos no último ciclo, me perguntou, no seu inglês tão fino, se eu tinha pensado alguma vez no que tentavam fazer. Eu disse que eu gostaria de sabê-lo. . . e então me explicou.
— Segue; vou captando.
— O caso é que eles acreditam que, quando tiverem feito a lista de todos os nomes, e admitem que há uns nove bilhões, Deus terá alcançado seu objetivo. A raça humana terá́ acabado aquilo para o qual foi criada e não haverá́ sentido algum em continuar. Certamente, a ideia mesma é algo assim como uma blasfêmia.
— Então que esperam que façamos? Suicidar-nos?
— Não há nenhuma necessidade disto. Quando a lista estiver completa, Deus entra em ação e simplesmente acaba com todas as coisas!
— Oh, já compreendo! Quando terminarmos nosso trabalho, terá lugar o fim do mundo.
Chuck deixou escapar uma risadinha nervosa.
— Isto é exatamente o que disse ao Sam. E sabe o que ocorreu? Olhou-me de um modo muito estranho, como se eu tivesse falado alguma estupidez na classe, e disse: “Não se trata de nada tão corriqueiro como isso”.
George esteve pensando durante uns momentos.
— Isto é o que eu chamo uma visão ampla do assunto — disse depois. — Mas o que supõe que deveríamos fazer a respeito? Não vejo que isso signifique a mais mínima diferença para nós. Ao fim e ao cabo, já sabíamos que estavam loucos.
— Sim. . . mas não te dá conta do que se pode passar? Quando a lista estiver acabada e o plano final não der certo, ou não ocorra o que eles esperam, seja o que for, podem nos culpar do fracasso. É nossa máquina a que estiveram usando. Esta situação eu não gosto nem um pouco.
— Compreendo — disse George, lentamente. — Faz sentido. Mas esse tipo de coisas ocorreu outras vezes. Quando eu era um menino, lá em Louisiana, tínhamos um pregador louco que uma vez disse que o fim do mundo chegaria no domingo seguinte. Centenas de pessoas acreditaram e algumas até venderam suas casas. Entretanto, quando nada aconteceu, não ficaram furiosas, como se poderia esperar. Simplesmente decidiram que o pregador tinha cometido um engano em seus cálculos e seguiram acreditando. Parece-me que alguns deles acreditam ainda.
— Bom, mas isto não é Louisiana, se por acaso ainda não se deu conta. Nós não somos mais que dois e monges os há a centenas aqui. Eu lhes tenho afeto e sentirei pena pelo velho Sam quando vir seu grande fracasso, mas, de todos os modos, gostaria de estar em outro lugar.
— Isto desejo eu há semanas. Mas não podemos fazer nada até que o contrato tenha terminado e cheguem os transportes aéreos para nos levar. Claro que — disse Chuck, pensativamente — sempre poderíamos recorrer a uma ligeira sabotagem.
— Como? Isso pioraria as coisas!
— Creio que não. Veja: funcionando as vinte e quatro horas do dia, tal como está fazendo, a máquina terminará seu trabalho dentro de quatro dias a partir de hoje. O transporte chegará dentro de uma semana. Pois bem, tudo o que precisamos fazer é encontrar algo que tenha de ser reparado quando fizermos uma revisão, algo que interrompa o trabalho durante um par de dias. Nós damos um jeito, certamente, mas não muito às pressas. Se calcularmos bem o tempo, estaremos no aeroporto quando o último nome for impresso. Então, já não nos poderão agarrar.
— Eu não gosto da ideia — disse George. — Seria a primeira vez que abandonaria um trabalho. Além disso, provocaria suspeitas. Não; vamos ficar e aceitar o que venha.
— Sigo sem gostar disso — disse, sete dias mais tarde, enquanto os pequenos mas resistentes cavalinhos de montanha os levavam para baixo, serpenteando pela estrada. — E não pense que fujo porque tenho medo. O que passa é que sinto pena por esses infelizes e não quero estar junto a eles quando se derem conta de quão tolos foram. Pergunto-me como o vai tomar Sam.
— É curioso — replicou Chuck — mas quando lhe disse adeus tive a sensação de que sabia que nós partíamos de seu lado e que não lhe importava, porque sabia também que a máquina funcionava bem e que o trabalho ficaria muito em breve acabado. Depois disso. . . claro que, para ele, já não há nenhum depois. . .
George se voltou na cadeira e olhou para trás, atalho acima. Era o ultimo sítio de onde se podia contemplar com clareza o monastério. A silhueta dos achaparrados e angulares edifícios se recortava contra o céu crepuscular: aqui e lá se viam luzes que resplandeciam como as ponteiras do flanco de um transatlântico. Luzes elétricas, certamente, compartilhando o mesmo circuito que o Mark V. Quanto tempo seguiriam compartilhando?, perguntou-se George. Destroçariam os monges o computador, levados pelo furor e pelo desespero? Ou se limitariam a ficar tranquilos e começariam de novo todos os seus cálculos?
Sabia exatamente o que estava passando no alto da montanha naquele mesmo momento. O grande lama e seus ajudantes estariam sentados, vestidos com suas túnicas de seda e inspecionando as folhas de papel, enquanto os monges principiantes as tiravam das máquinas de escrever e as pregavam aos grandes volumes. Ninguém diria uma palavra. O único ruído seria o incessante golpear das letras sobre o papel, porque o Mark V era por si completamente silencioso, enquanto efetuava seus milhares de cálculos por segundo. Três meses assim, pensou George, eram já de subir pelas paredes.
— Ali está! — gritou Chuck, assinalando abaixo para o vale. — Não é belo!?
Certamente era, pensou George. O velho e amolgado DC3 estava no final da pista, como uma miúda cruz de prata. Dentro de duas horas os levaria para a liberdade e a sensatez. Era algo assim como saborear um licor de qualidade. George deixou que o pensamento lhe enchesse a mente, enquanto o cavalinho avançava pacientemente.
A rápida noite das alturas do Himalaia quase se lhes jogava em cima. Felizmente, o caminho era muito bom, como a maioria dos da região, e eles foram equipados com lanternas. Não havia o menor perigo, só certo desconforto causado pelo frio intenso. O céu estava perfeitamente iluminado pelas estrelas familiares e amistosas. Pelo menos, pensou George, não haveria risco de que o piloto não pudesse decolar por causa das condições do tempo. Esta tinha sido sua ultima preocupação.
Começou a cantar, mas em pouco parou. O vasto cenário das montanhas, brilhando por toda parte como fantasmas brancos e encapuzados, não animava a esta expansão. De repente, George consultou seu relógio.
— Estaremos ali dentro de uma hora — disse, voltando-se para Chuck. Depois, pensando em outra coisa, acrescentou: — Pergunto-me se o computador terá terminado seu trabalho. Estava calculado para esta hora.
Chuck não respondeu; assim George se voltou completamente para ele. Pôde ver a cara do Chuck; era um oval branco voltado para o céu.
— Olhe — sussurrou Chuck.

George elevou a vista para o espaço. Sempre há uma última vez para tudo. Viram. . . sem nenhuma comoção. . . que as estrelas se apagavam.