segunda-feira, 23 de maio de 2016

92 – Tati, a garota – A. Machado

Anibal Machado (1894-1964), mineiro de Sabará, escritor,  futebolista (autor do primeiro gol do Galo mineiro) e professor, autor de contos magistrais como Viagem aos seios de Duília e Tati, a garota aqui reproduzido.
Tati, a garota
Aníbal Machado

Vendo que era mesmo impossível, Tati desistiu de pegar o raio de sol estendido no chão. Os dedos feriam a terra inutilmente: o reflexo não tinha espessura.
Seu capricho agora era com a água. Queria ver se retirava ao menos um pedacinho do tanque, mas o liquido suspenso em suas mãos vira uma coisa diferente que se desmancha logo, cintilando entre os dedinhos. E na superfície do tanque não ficava a menor cicatriz!...
É a primeira vez que Tati brinca na agua com intenção de agarrá-la, de sentir-lhe o mistério. Fica tão absorta, que os apelos “Anda, Tati! Larga isso, menina!” que vem da janela, nem chegam a ser ouvidos.
Logo depois, começa a ventar. Mas, com o vento era diferente: Tati já sabia que ele nunca se deixa agarrar nem ver, embora viva sempre em toda parte dando demonstrações de sua presença. Esse vento!...
Antes de subir, joga água em si mesma, apressadamente, borrifando-se no rosto, no vestido, como mulher que se perfuma.
Chegando a noite, Manuela atira-se à cama, sem responder a algumas perguntas que lhe faz a filha, sempre intrigada com a água. Debaixo das cobertas, Tati ainda balbucia os últimos pedidos: um carrinho e um patinho igual ao que viu nas mãos de outra criança.
—Esse menino que tinha patinho, não sabe, mamãe? comia cada bombom que só você vendo!... O papel era uma beleza! Aqui, eu acho que todo mundo come muita bala, também...
—Dorme, Tati.
—Aqui é bom.
—Dorme...
O mar seria visto em toda a sua extensão se não fosse o arranha-céu. Os outros personagens da vida de Tati, as amiguinhas do subúrbio, de onde a mãe se mudara, baralharam-se naquele momento na memoria. Uma porção de crianças sumindo-se na poeira, na neblina, dentro da noite... Quem mais necessitava do sono era a costureira. Exausta, só no dia  seguinte trataria de pôr em ordem o aposento. O bairro era outra coisa agora, bem diferente de há seis anos atrás, quando costurava para uma família rica, já gravida de Tati. O rapaz se casara e partira para a Europa. Para que pensar em coisas tristes?...
—Mamãe esse barulho e mar, não é?
—É. Não tenhas medo, não. Dorme...
A mãe se enganou. Tati não estava com medo; estava era louca por que o dia amanhecesse depressa e ela pudesse correr ate à praia, chegar bem perto das ondas. Enquanto a mãe dormia, Tati, ainda acordada no quarto escuro, sentia estar num lugar muito diferente, muito longe de tudo. Os trens do subúrbio não passavam ali. Ouvia-se tanto e tão perto o mar que, na escuridão, parecia que o quarto navegava...
Quando, na manhã seguinte, a menina abriu os olhos, uma faixa de sol cortava ao meio o corpo da costureira. Tati ficou esperando que ela acordasse. Em vez de despertá-la diretamente, começou a fazer barulho, como se fosse sem querer. As perguntas a fazer-lhe estavam se acumulando na sua impaciência. O corpo de Manuela dividia a cama em duas metades, como uma muralha branca. Tati imaginou que o outro lado seria o melhor; deu uma cambalhota e passou-se para o outro lado. Gostou e riu. Quis repetir o salto e transpôs novamente a colina de carne no vale da cintura.—Ih! esta mamãe não acorda.
Era grande sua mãe. Como ela começasse a despertar, Tati se alvoroçou, agarrou-se a seu rosto, aos beijos, cascateando frases e perguntas:
—Mamãe, você pode ter um filho patinho?... Eu já acordei, já fui até lá longe, no fim do corredor... Essa casa e engraçada. Deixa eu ir ver o mar agora?
Logo depois, a figurinha da criança se perdia entre as pernas dos pescadores de arrastão.
O bairro tinha agora mais aquela garota. Pediam-lhe cachos de cabelo, mexiam com ela, davam-lhe restos de frutas na quitanda. Duas vezes, a mãe pensou que ela tivesse sido raptada. Os motoristas do “ponto” levavam-na como mascote. A costureira, a princípio, se assustava, depois se habituou.
—Olha, se foges para o meio do arrastão, os pescadores um dia te pisam, e te botam no balaio, pensando que es peixe.
Tati esta ouvindo com atenção. Ser jogada no balaio, de mistura com os peixes!—“E depois, mamãe?”—“Depois... eles te vendem aos fregueses.” A garota, emocionada agora, sente- se vendida. Estava quase a chorar, imaginando o seu destino: cortada, frita ou cozida, explicou-lhe a mãe.—E servida, depois, nalgum pastelão ou mayonnaise, você vai ver.
Os gritos de dois garotos na calçada interrompem-lhe a angústia. Tati desce depressa, aos trambolhões. Lá de baixo ainda faz uma pergunta:—Não vou ser vendida, não! Não é, mamãe?
Era a hora combinada para uma concentração de bonecas num lote vazio. Chegaram algumas crianças timidamente, cada qual sobraçando uma boneca pavorosa. Tati, a mais despachada, ia-as colocando de maneira a que formassem uma grande família. As bonecas de pano, pretinhas, se misturavam no terreiro com as brancas, de louça, com as índias e mulatas de palha de milho. Uma menina, que se conservava longe, agarrando a sua, acabou aderindo. Mas a que ficou solitária, no sexto andar do apartamento, apenas olhava, cheia de inveja. De baixo, as crianças gesticulavam para ela:
—Vem brincar também, boba! Vem!
A ama, quando a mamãe saíra a passeio à cidade, tivera ordem de não deixar. A garota estava louca de vontade. Um moleque que apreciava a festa de longe, gargalha:
—Olha aquele lá, sem cabeça! Que gozado!...
Era o Gerê, guilhotinado o ano passado numa janela. Esse boneco não devia figurar no meio dos outros. Mas Tati votava-lhe estima particular. Sujo, esventrado, arrastado pelos cachorros, tantas vezes encharcado pela chuva e salvo da lata de lixo, Gerê vinha tendo quase a mesma idade e era o companheiro inseparável de Tati.
—Espera aí, que vou buscar a cabeça dele! disse Tati, correndo.
Não achou a cabeça. Na janela do apartamento, a menina solitária exibia uma boneca maravilhosa, que seria a rainha no meio das outras, se descesse. Tão imóvel parecia a menina da janela e bem vestida, que não se distinguia bem qual das duas era a boneca. Tati, ao voltar, explicou que Gerê era assim mesmo: de vez em quando, caía-lhe a cabeça; as pernas, as tripas, já foram mudadas.
—Vocês não estão vendo este braço aqui? Pois foi mamãe que botou. Mamãe vai dar agora um bebê de verdade. Quando papai chegar, ele vai colar a cabeça.
—Você tem pai?
—Tenho, uai! Tenho até muitos...
As crianças se riram. Tati ficou desconcertada.
—A gente tem um pai só, boba! explicou uma lourinha.
Tati ficou imaginando que ter mais de um, ter muitos, era mais vantajoso. Mas as crianças continuaram a rir. Então, pensou Tati, com certeza era porque só se podia ter um pai... e o dela, nesse caso, devia ser .. quem? O seu Vicente, com certeza, que a levou a Niterói tantas vezes, que lhe compra brinquedos, que a acompanha a Feira de Amostras—o melhor lugar que já se viu no mundo...
Mas ficou na dúvida. Parecia-lhe que a mãe lhe havia dito, há muito tempo, que o pai tinha viajado—viajado ou morrido, não se lembrava bem. Outros pareciam “pai”, mas desapareceram logo, Tati se esqueceu deles. Um, com quem simpatizara, que passeara com ela num domingo, já era pai de outra menina, estava ocupado... Precisava, entretanto, arranjar pai, cada amiguinha tinha o seu, que era visto todo dia saindo cedo e voltando com embrulhos, com certeza de bombons. Ficaria então sendo o seu Vicente mesmo, nome que lhe acudira assim de momento.
—Eu acho que meu pai é o seu Vicente... disse sem convicção.
As crianças sorriram.
—Então você não sabe quem e seu pai?... Que é isso?...
Apertada pelas perguntas, Tati achou melhor correr para casa. Sua mãe é que devia saber tudo. Ao passar debaixo do arranha-céu, recolheu, maravilhada, uma caixa vazia de bombons atirada lá de cima. Pediu a mãe os esclarecimentos. Não compreendeu nada, mas deu-se por satisfeita.
— ...Enfim, teu pai, não sei se voltara, disse-lhe Manuela. Também para que ter pai?
—As outras usam, mamãe...
—Tua boneca tem pai, tem? Então!?
Tati deixou cair uma cortina sobre esse mistério. Mas devia ser aquilo mesmo: boneca não precisa ter pai... Tinha mãe, que era ela, Tati.
A porta parou uma garotinha sobraçando Gerê e Carolina, os dois bonecos que ficaram esquecidos no brinquedo. Carolina apresentava uma inchação no braço:—“Acho que foi escorpião que mordeu ela, lá no mato, mamãe!... Eu posso ir na praia?” “Quando neném nascer, eu levo ele lá para brincar comigo. Você deixa, não deixa, mamãe? Carolina também vai.” Uma hora depois Tati voltava em pranto, toda suja de areia, indignada com um avião que passou baixinho por ela, quase lhe levando a cabeça.
—Garanto que foi de proposito, mamãe. Garanto... Eu xinguei ele e ele voltou com mais raiva ainda...
Contou então que ela e a pretinha, quando perceberam o avião voltando, se haviam deitado na areia; pois não é que o bicho ainda esvoaçou mais baixo, mesmo em cima delas, como um gavião enorme!.. –Uma coisa medonha, mamãe!
Horas monótonas, depois que todas as amiguinhas seguiram para a escola. Que fazer? Ninguém quer brincar. Não há ninguém para brincar. A filha do tintureiro não se mexe, quase nem fala. É com a pretinha Zuli que Tati se arranja. Já plantaram feijão e milho na areia. Feijão e milho de verdade. Tati deseja também ir para a escola, carregando a maleta cheia de objetos. Aliás, a escola tinha menos importância, o principal era a maleta com os objetos. Fica horas rabiscando a porta de entrada, aprendendo sozinha. Começa a conceber uma carta para o bebê que ia nascer. Queria dizer-lhe que viesse depressa, o novo bairro era uma maravilha, o mar pertinho mesmo. Às vezes, à sua maneira, cantava o “Ouviram do Ipiranga”, e se imaginava na escola.
—Vai chamar mamãe, disse-lhe uma freguesa ao chegar à porta.
—Não posso.
—Uai! Você é tão boazinha! Vai.
—Você não vê que estou trabalhando!
Ficou séria. Depois de algum tempo, levantou para a desconhecida o papel:
—Vê se saiu algum negócio ai. A mulher finge ler alto qualquer coisa na folha rabiscada. Tati se levanta, exclama exaltada:—Pois é isso mesmo que eu tinha escrito! E, logo depois, subiu ao primeiro andar:—Mamãe, eu aprendi sozinha a escrever. Sabe como é que a gente faz? A gente esfrega bem o lápis no papel, esfrega bem e pronto! Sai logo uma coisa; lê isso aqui.
A mãe sorri, olhando para o papel. Depois pergunta:—E esses rabiscos?
—Isso é o Brasil... A menina tomou-lhe de novo a folha e, deitada no chão, continuou rabiscando:—Mamãe, acho que tem uma moça chamando você lá embaixo...
—Por que não me disse logo?
—Me esqueci.
Tati só deixava de ser alegre quando dormindo. Mesmo assim, se tocassem nela, a garota sorria. E amanhecia sempre rindo, como o sol. Quando lhe perguntavam por ela, a mãe respondia:—Sei lá! Anda por aí pulando...
As pessoas da vizinhança assustavam Manuela:—“A senhora ainda perde sua filha. Esses choferes não tem entranhas, os caminhões são malucos!” Que podia ela fazer? Não tinha quem tomasse conta da filha. Prendê-la, impossível...
Brincava sempre na calçada do lado esquerdo do arranha-céu. O lado milagroso. Era de lá que caiam os objetos. Depois que descobriu esse segredo, a menina passava horas ali, na expectativa. Constantemente entravam embrulhos no edifício. Tati imaginava que lá dentro se passava muito bem. Uma espécie de paraíso. De vez em quando descia uma nuvem de papeis multicores que ela apanhava depressa, maravilhada. Sempre do lado esquerdo. Uma mulher loura, que devia ser uma fada, tinha mania de jogar fora objetos de pouco uso. De proposito já atirara aos pés de Tati uma bonequinha e um vidro vazio de perfume. Certa vez, a garota entrou na casa com um porta-seios amarrado a cintura. Tinha-o encontrado no capinzal do outro lado do arranha-céu. Achou esquisito que aquilo houvesse chamado a atenção de todo mundo. De outra feita, apareceu com uma seringa de borracha, mas sua mãe lhe arrebatou imediatamente das mãos o estranho objeto. Tati ficou sem compreender. Sua mãe era formidável, mas fazia muita bobagem. Que é que tem seringa?...
Já há muito não cai nada do lado esquerdo. Com certeza a fada se mudou. Enquanto espera o vulto de cabeleira loura, joga “amarelinha” com a preta. Avista o Pão de Açúcar e diz pulando na corda:—“Eu vou lá um dia.” Olhando para o sétimo andar:—“O arranha-céu hoje está ruim. Quando eu subir o Pão de Açúcar, vou jogar pedra nos navios que passam embaixo; tem um homem que largou mamãe e que foi-se embora num navio...”
Não caia mesmo nenhum brinquedo do arranha-céu. O calção de Tati secava-lhe no corpo e do mar ventava frio.
No dia seguinte voltou na esperança de encontrar ainda alguma coisa. Mas não podia olhar para cima, para o apartamento da fada, que a cabeça lhe doía.
Uma vizinha gritou para Manuela que viesse depressa carregar a criança. Se não queria vê-la mortal... A portuguesa da quitanda tapava a cara para não presenciar o esmagamento.
—Parece até criança enjeitada...
Mas os motoristas faziam a curva com agilidade, os pneumáticos cantando, e Tati continuava dormindo no asfalto, quase no meio da rua. Manuela desceu, arrecadou a filha. A menina estava febril, respirava mal. Mudaram-lhe a roupinha, limparam-lhe a cara.
Dessa vez, não achou sabor no passeio de ônibus. Mal teve tempo de agarrar Carolina no tumulto da saída. Foi levada num turbilhão para a cidade. Apearam-na, meteram-na num elevador, tudo num turbilhão. Num turbilhão foi embrulhada no lençol, deram-lhe injeções, arrancaram-lhe as amigdalas.
Dias depois, mal pode recordar-se do que lhe sucedera. Só se lembrava dos dois brutos de avental que a agarraram, do sangue que saia pela boca e molhava a bacia. Não compreendia como é que sua mãe, tão poderosa e tão boa, houvesse consentido em tamanha estupidez. Ficou ressentida durante dias, soluçando às vezes; mas, com os sorvetes sucessivos que a mãe lhe dava, convenceu-se que ela continuava a ser a mesma. Narrava com orgulho a outras crianças a proeza em que estivera metida.
—Você agora não saia de perto de mim, ouviu?
Tati aceitou. Com a condição de ganhar mais sorvetes. Seu lugar ficou sendo a janela. Passava horas quietinha lá em cima, espiando a vida. Que graça tinha aquilo? Domingo pau! Viu uma onda enorme crescendo para se arrebentar na praia. —“Mamãe, chegou agora uma onda do tamanho do arranha-céu. Eu pensei que ela fosse levar a nossa casa...” Continuou espiando. Não acontecia nada, não passava ninguém. De repente, observou:—“Mamãe, subiu um homem de preto!...”
A costureira nada respondia, mais atenta ao rumor ultimo de seus pensamentos do que ao barulho da máquina e à voz da filha. O tempo passava. O tédio pesava. Ate o mar parecia dormir. Tati também quase dormia no parapeito. De novo a voz dela:—“Mamãe, mamãe! Desceu outro homem de preto...” Fez uma pausa.—“Isso e engraçado, não é?”
Manuela, com o pensamento longe. A máquina parou o movimento. A costureira agora se assusta, porque os gritos que vem da janela são fortes.—Mamãe, mamãe!...
—Que é, minha filha? Que foi?... Manuela receava que a menina estivesse a precipitar-se. Entrou atemorizada no aposento.—Mamãe, perguntou-lhe Tati, baixando a voz, quando é que eu vou ficar grande?...
- Assustando sua mamãe!...
Da janela, apontando para os horizontes do mar, pedia explicações:
—Pra lá, o que é que tem?
—É o mar ainda.
—E depois?
—Depois, é a África.
—E pra lá?
—Pra lá é a Tijuca.
—Não! Eu pergunto: pra lááá, o que é que tem?
—Ah! minha filhinha, não sei não, sua mãe tem mais o que fazer.
—E pra lá?—insistiu ainda, virando-se para outro lado
—É o resto do Brasil. Depois é a America do Norte.
Com ar de interpelação:
—E o mundo mesmo, onde é que fica?
—Uai, bobinha, o mundo é isto tudo!...
O que Tati quereria fazer se não estivesse presa era abrir um túnel na areia, brincar de casinha, e depois subir o elevador do arranha-céu para ver melhor o mundo que Manuela lhe vinha explicando. Mas sua mãe estava ruim aquele dia, proibiu tudo e agora jogou-a na cama. Sem ação, sem sono, começa a imaginar e faz perguntas:—Mamãe, filho de elefante já sai daquele tamanho? Por que e que bicho não fala, hein?... Você não sabe o Zequinha? Ele é moleque mesmo... Outro dia ele quis suspender a minha saia, eu dei um soco nele. Eu também tenho muque, não tenho, mamãe? Quem tem mais muque que eu sei é o seu Vicente, mas o muque de Popeye ainda é muito maior... O muque de Deus, então nem se fala, não é, mamãe?...
Era o defeito de sua mãe, refletia Tati: quase não conversa. Quando conversa é com gente grande sobre costura e doenças: —Só bobagens. Saltou no colo dela. Era quente esse colo.

Tati esperava amanhecer para se dirigir ao mar. O mar estava sempre em seu pensamento, diante do olhar ou nos ouvidos. Louca por ele. Respeitava-o como à sua mãe. Ambos eram até parecidos, não sabia bem por quê. Grandes, poderosos e macios, podendo enraivecer de repente, podendo matá-la se quisessem. Misteriosa, sua mãe era também; mas perto dela, como agora, Tati se sentia abrigada, ao passo que o mar era terrível, oh! terrível...
—Não brinca muito longe de casa, recomendou-lhe Manuela, quando o sol do dia seguinte clareou a praia. A criança respondeu que tinha pensado num brinquedo muito bom para não ir longe—o de horta. Num canto do terreiro abriu com a pretinha uns buraquinhos, atirou dentro grãos de milho e feijão. Uma empregada da lavanderia disse que pegava. Os dias iam passando.
—Quando você for na cidade você me leva, mamãe?
Delicia era ver as vitrinas. A principio Tati queria possuir tudo que aparecia nelas. Custara a compreender como é que as pessoas não furtavam aquelas maravilhas. Agarrada ao dedo de sua mãe, ia ouvindo as razoes por que não se podia fazer isso. A explicação não a convence, tanto mais que outros mostruários belíssimos de frutos, brinquedos e objetos bonitos vão sucessivamente se oferecendo e provocando.
—Eu acho que neste mundo tem tudo, não é, mamãe?
Impressionada com uma vitrina de queijos, pergunta qual a árvore que dava aquilo. Alguns manequins, parecendo gente de verdade, a irritavam; tinha vontade de atirar pedra neles. A mãe se demora nas compras, a garota aproveita as quadras do passeio para jogar amarelinha. Indiferente aos empurrões, vai sendo arrastada para longe, pela onda de transeuntes apressados. Meu Deus, em que casa mesmo entrou sua mãe? Tati já esta longe, mais absorta no jogo do que amedrontada. Mas sua mãe está demorando. De que porta sairá Manuela? Sente-se perdida, angustiada, a querer gritar pela salvadora, quando uma mão aflita a agarra e lhe dá um beliscão. Viera assustada sua mãe. A garotinha chora. E como pede entre lágrimas um automovelzinho, a mãe não sabe se esta chorando pelo beliscão ou pela falta do brinquedo. A costureira consulta a bolsa. O dinheiro não dá. A porta de uma casa de pássaros, Manuela não tem forças para arrancar a filha do êxtase que a deixara ali boquiaberta. Os canários cantavam e saltavam.
Tati foi logo escolhendo com avidez:
—Eu quero aquele, mamãe; aquele que esta mais maduro...
E os peixinhos no aquário agora!—Ai! que coisa mais linda do mundo, você um dia me dá aquilo, mamãe?
Tati quase perde a respiração diante do aquário.
Mais adiante, a entrada da Policlínica, lembra-se de dizer que esta sentindo o “cheiro do Dr. Almeida”, o que a operou.
Aqui, seus olhos se levantam com terror para o rosto de Manuela. Estaria sendo conduzida para algum novo sacrifício? Ficou caladinha, sua mamãe prosseguiu, entrou em outras casas, cumprimentou gente, discutiu preços. O perigo passou... Tati respirou. Sua mamãe sempre desembaraçada e corajosa, os homens a olharem para ela e ela firme, sem se perder na floresta da cidade!
Era mesmo formidável sua mãe! Tati a admirava. As meninas do bairro, as vezes, apostavam quem tinha mãe mais importante, mais bonita. Foi quando estacionara na calçada uma senhora trajada com luxo, que uma das garotas gritou orgulhosa:—“Aquela ali e que é minha mãe, olha lá!” A mulher impressionava pela riqueza da toilette. As outras meninas olhavam com respeito. Tati ficou a contemplá-la, meio triste. De repente, abriu um sorriso, deu um grito:—“Mas quem fez o vestido dela foi mamãe, taí.”—Foi nada! É prosa sua!—Foi, sim! Que vê?—Atravessou a avenida e fez a pergunta:—“Não foi mamãe que fez o seu vestido, moça?” A senhora se atrapalhava com a bolsa, o lorgnon, e as luvas.—“Não foi mamãe que fez, moça?” Um ônibus foi parando, a senhora embarcou depressa, um tanto perturbada. Tati ainda exclamou atrás do veiculo:—“Foi mamãe, sim, foi mamãe!”
Como a discussão terminasse em briga, Manuela prendeu a garota. Estranhou que ela ficasse quieta tanto tempo e foi ver. Tati se achava diante do espelho, colocando grampos nos cabelos, em atitude de grande dama, pondo-se rouge e fazendo ademanes de estilo. Manuela se ri. Tati despertando de seu sonho, recebeu um susto, começou a chorar. Chorou bastante. É manha. A vida estava ficando monótona. As bonecas estão quebradas, as amiguinhas não aparecem. Será fome? Não. É sono.
Tati dorme. Desperta algumas horas depois, a ouvir uma conversa esquisita entre sua mãe e outra mulher. Faz uma pergunta, Manuela responde que mais tarde, quando ela for grande, explicara tudo.
Já era enorme a quantidade de coisas que Tati iria saber quando ficasse grande.
As amas impeliam os bebês nos carrinhos, a hora matinal. Tati chegava perto para acarinhá-los, mas era repelida por causa das mãos sujas. Então ia brincar com as ondas. De repente, a praia começou a ficar vazia de crianças. Os carri­nhos atravessavam a rua e se recolhiam precipitadamente. Algumas amas que costuravam nos bancos ao lado dos bebês levantavam-se e fugiam. Depois, outras; e, assim, todas se foram. Alguém viera anunciar que Febrônio, o “monstro”, havia fugido da prisão e passeava ali pelas imediações. A notícia ainda assustou mais devido ao céu que escureceu subitamente, e ao vento que começava a encapelar o mar. As vidraças batiam, fechando-se. O monstro já devia estar presente por ali, a pegar crianças.
E mês de agosto
O vento sopra
Lá vem Febrônio
Corre, gente!...
Fechem as janelas
Que lá vem Febrônio
La vem que nem um maluco
Todo barbado
Na frente da ventania
Corre, gente!...
Tati ficou sozinha, pensando fosse alguma coisa que viesse do mar. Quem pode saber tudo o que vem do mar? Todas as crianças se foram, ela se sentia abandonada, querendo soluçar. Até as ondas pareciam correr atrás, expulsando-a das águas. Uma criada explicou-lhe:—Febrônio está solto, menina! Depressa pra casa!
—Que é, minha filha? perguntou Manuela, ao vê-la chegar pálida de terror.
—Febrônio, mamãe, Febrônio!... Diz que fugiu... Ele e o papão!... Deixa eu ficar no seu colo? Um tiquinho só...
Manuela carregou-a ao colo, mas quase não podia mais, porque o “outro” não deixava lugar.
Um dia, sem que Tati pedisse, todos insistiram para que fosse brincar. Quando voltou, uma senhora que ela mal conhecia dera-lhe merenda com recomendação de que continuasse a brincar. Sempre brincou, ora essa!
Por que é que aquele dia todo mundo estava fazendo questão?
Era o irmão que ia nascer. Ao perceber o que se tratava, assumiu aspecto grave, não quis muita conversa com as companheiras. Enfim, chegara o dia! No matinho do terreno baldio ficou colhendo umas flores para o irmão, ¡a espera do aviso. A cegonha estava demorando muito. Já tarde foram dizer-lhe que podia vir. Voltou correndo, a respiração cortada. No quarto se discutia a melhor maneira de dar a notícia.
—Eu acho que a senhora e quem devia explicar, disse uma velha dirigindo-se a parteira.
—Eu não. Não gosto de dar má noticia a ninguém.
—Olha, decidam depressa que a menina já vem subindo.
—Eu não digo.
—Nem eu.
—Eu acho que a senhora, como tia, é quem devia contar.
Manuela murmurou com a voz sumida:—Mas é preciso dizer com muito jeito.
Os passos iam crescendo.
—Ih, ela vem vindo!... Já está subindo as escadas!...
—Como é que há de ser, gente? .. Ela vem reclamar o irmão. Como vai ser?...
Os passos de Tati eram fortes. Subia com o ramalhete. Achou tudo diferente no quarto. Figuras estranhas, caladas, e um desagradável cheiro de desinfetante, aquele “cheiro do Dr. Almeida”. Reparou bem no teto, nas janelas. Nenhuma abertura. Por onde teria passado a cegonha? Quando virou o rosto para o berço, as mulheres se entreolharam, comovidas. Foi primeiro pelo olhar que ela fez a interrogação muda. E, em seguida:
—Cadê neném?...
—Fala a senhora em primeiro lugar, insistia alguém, baixnho, com a parteira.
—Cadê neném?... repetiu a menina, deixando cair as flores.
Manuela tapou o rosto com o lençol para não assistir a cena.
—Cadê neném! reclamou ainda, com um crescendo soluçante na voz. A pergunta fora feita agora com a vista baixada sobre o berço vazio. Uma senhora levou-a ao canto para explicar:
—Escuta, minha filha, não fica triste não. Papai do Céu levou neném, mas vai trazer outro, ouviu?
Para que foram dizer! Tati caiu no pranto. Esbravejou, sacudiu-se no chão onde se espalharam as flores. Xingou Papai do Céu, não admitiu que ninguém a tocasse.
As mulheres se limitaram a emudecer presenciando o desespero de Tati. Apos alguns momentos, levantou-se grave, a fisionomia desfeita, e se dirigiu a mãe. Sua mãe e quem devia responder.
—Cadê neném, mamãe? Fala de verdade.
Manuela apenas beijou-a, sem dizer palavra.
A segunda fase do desespero de Tati foi em tom de manha e tinha a forma de uma reivindicação: “eu quero neném! eu quero neném! eu quero neném!” De repente interrompeu o protesto. Encaminhou-se novamente para sua mãe e, solene, propôs uma solução:
—Você podia repetir o neném, mamãe.
—Posso, meu bem...
—Mas pode ser para amanhã?...
Antes de ela perceber o sorriso de Manuela, ouviu os gritos da pretinha Zuli, anunciando-lhe que as plantas tinham nascido, que viesse ver depressa o milho e o feijão. Desceu como louca as escadas. Viu que o feijão e o milho tinham nascido de verdade. Pegaram! Estavam vivos! Ficou contemplando as hastes tenras brotando da terra. E pulava de alegria.
Deu a mão a pretinha, e ambas dançaram em torno. Durante dias, Manuela já de pé, distraía-se a garota acompanhando o desenvolvimento dos vegetais. Entusiasmava-se; saia a calçada, chamava os transeuntes para ver. Um inglês, que se encaminhava cedo para o serviço, deixou-se arrastar pela mãozinha dela e teve que entrar. A mãe disse:
—Esses homens não acham graça, minha filha. Eles vão sempre muito ocupados...
E essa ventania agora? Manuela indo fechar as vidraças, encontrou Tati e a pretinha agachadas no terreiro.
—Suba depressa, menina!
—Deixa o vento passar primeiro, mamãe.
—Mas é por causa do vento mesmo.
—Você não esta vendo que o vento quer quebrar o meu milho!...
Tati de cócoras, imóvel, segurava as hastes do milho com ambas as mãos. A pretinha se incumbia de proteger o feijão. O vento afinal passou, o milho estava salvo. Tati subiu com vontade de levá-lo consigo para que continuasse a crescer junto de sua cama, debaixo dos seus olhos.
A costureira teve de trabalhar dobrado para acudir as despesas do parto. As encomendas de vestidos para as festas do fim do ano faziam com que ela fosse mais procurada pela freguesia. Todas tinham pressa. Algumas levavam as filhas vestidas como bonecas. Tati ficava admirando, convidava-as a brincar, a ver o milho. Elas nada respondiam, permaneciam imóveis. Tati estava certa de que eram meio bobas.
Costurando ou debruçada sobre os figurinos, Manuela pouco se lembrava da filha, que lhe parecia algumas vezes um obstáculo e que era, agora, como se não existisse. Mas Tati ia vivendo a seu modo. O negocio do irmãozinho, tão esperado, e que não veio, ficou ainda meio obscuro na sua ideia. Ah! se estivesse brincando com ele! Mais outro mistério aquilo... Não era tarde e o aposento entrou na penumbra. Tati se espanta.
—O quarto está murchando, mamãe.—A costureira acendeu as luzes, Tati achou engraçada aquela noite prematura. Como era fácil improvisar-se uma noite! Ficou um pouco agitada:
—Vamos brincar de dormir, mamãe? Só de pândega!...
Seria possível que sua mãe recusasse uma ocasião como aquela? Manuela nem responde. “Essa mamãe não gosta nunca de brincar com a gente.”
Por que e que Tati está chorando agora, tão sentida? A culpa foi de Manuela, que soltou uma risada quando a filha lhe apresentou a boneca de barriga grande e lhe informou que “Carolina também estava esperando neném”. Pois se estava esperando de verdade, pensou a garota, como e que sua mãe podia duvidar?
Tati não gostava se fizesse brincadeira com coisas sérias.
Após o parto e apesar das labutas excessivas, voltaram ao corpo de Manuela as formas e linhas habituais. Uma vontade  maior de viver, de expandir-se. Dezembro vinha chegando, ia-se entrar num período diferente. O verão que se anunciava, as roupas estivais, o Natal, o reveillon, as praias cheias, os primeiros sinais do carnaval próximo,—tudo lhe transmitia uma exaltação que ninguém lhe notava no rosto calmo.
—Agora, minha filha, é hora de dormir.
Deitou a criança, cobriu-a. Fora, abria-se uma noite fria e bela, a primeira após a invernada. Manuela terminou algumas arrumações no apartamento e foi sentar-se junto a máquina de costura. Estava farta de costuras. Viu um barco de pesca atravessar a zona de luar e apagar-se na de sombra. Sua vontade era sair aquela noite de sábado, divertir-se um pouco.
Os namorados ressurgiram de novo na praia, depois da temporada de chuva. Parecia terem ficado escondidos na neblina, parados, esperando pelo tempo, até poderem continuar o eterno passeio.
Quando estaria a filha em idade de colégio? Manuela só teria alguma liberdade depois que a internasse. Mas a pequerrucha tem apenas seis anos. Criança é sempre um embaraço. Desfazer-se dela nao seria difícil, se a entregasse a tia do subúrbio. Que fazia o pai? Abandonou a menina, nem mesmo chegou a conhecê-la.
A costureira pousou o olhar na cama de Tati e sacudiu a cabeça, afastando um pensamento sombrio. Não, isso não faria... A criança não tinha culpa, entregá-la a tia feroz, seria maldade. Nem à tia, nem ao juiz de menores.
Abriu a bolsa ao acaso, tirou um caderno de notas. Muitos nomes e endereços. Os homens!... com a sua brutalidade, o seu egoísmo, a furia de gozar as mulheres e passarem para diante, deixando-as caídas no caminho.
Manuela era dessas muitas mulheres desiludidas do amor e que, entretanto, se guardam toda a vida para um homem desconhecido. Esperava sempre o amor, e os anos lhe iam chegando como comboios vazios, Tinham os seus grandes olhos uma luz indireta; luz que não ia buscar as coisas onde elas se achavam, como a dos holofotes; as coisas mesmas e que pareciam se vir banhar na claridade deles. Quando caminhava pelas ruas, os homens que acaso a fitavam deixavam-se ficar sob a difusão dessa claridade. Os que não lhe conheciam a voz imaginavam-lhe um timbre veludoso como correspondência a doçura desse olhar lento e absorvente de grande amorosa, pelo qual tudo mais dela se acertava,—o busto, o andar, as maneiras. O corpo era delicado até a cintura; dai para baixo, porem, e a medida que se aproximava do chão pelas pernas, ganhava força, era mais apto a receber as correntes que vinham a terra. A decepção com um homem não a tornara menos amorosa. Apenas se fechava mais, usava maior prudência antes de dedicar-se a alguém. Era enorme o amor disponível que trazia, mas secreto e cauteloso; não tão secreto, porém, que impedisse o transeunte sensível de pensar ao vê-la: ali vai uma mulher que parece transbordar de amor.
Aquela noite, enquanto Tati dormia, pensava em sair sem destino pela cidade. Valeria a pena aceitar algum convite? Ficou examinando as propostas, os endereços: Capitão Xavier... um belo tipo, pensou, mas com qualquer coisa de estúpido, de desagradável; e desses que só apaixonam as mulheres a distância, perto dão enjoo; grupo numeroso. Dr. Bastos... este parece um homem fino, mas envaidecido de sua situação social, de sua clínica; no fundo, bem tolo e cheio de preconceitos. Heitor... atleta, rico... um tanto imbecil...—Ó meu Deus, exclamou baixinho, será que uma pobre mulher não encontra a quem confiar o seu coração?... Antônio... continuou, examinando os endereços.—Ah! esse, sim; aqui está um que eu topava... Se dependesse de mim, ele nunca seria infeliz... Onde andará a essas horas? Que camaradão! Tão sincero, tão espontâneo... Era capaz de amá-lo... passear com ele por esta noite afora, até a madrugada.
—Mamãe, você gosta de mim?
Manuela se assustou. Nem se lembrava de que a filha existia. Que ideia de fazer-lhe Tati essa pergunta!
—Você não estava dormindo, minha filha?...
—Mas você gosta de mim?
Sua mãe estava tão misteriosa aquela noite!
—Dorme, menina. Olha: Carolina já está sonhando.
—Mas gosta, não gosta?
Tati abraçou Carolina e continuou a fingir que dormia. Manuela começara a despir-se. Sua mãe era mais bela fora da roupa, notava agora. Mais bela que todas as freguesas que vinham provar vestidos. Sua mãe era divina...
Dela lhe vinha tudo. Quando tiritava de frio, saltava-lhe ao colo e era logo aquele calor! Pena que só gostasse de conversar com gente grande.
A menina, deslumbrada, prosseguia na inspeção do corpo que a gerou:—Ah, é verdade, antigamente havia uma barriga enorme... Com certeza, foi Papai do Céu que levou também aquilo... Esta aí, isso foi bom...
No dia de Natal a praça amanheceu vibrante de campainhas, atravessada por dezenas de bicicletas novas, luminosas. Nenhuma criança quis emprestar a sua a Tati.
Sentada no banco, olhando com inveja para as que se divertiam, estava indignada com Papai Noel que não lhe trouxera nada. Desde o ano passado guardara essa magoa. O velho só botava brinquedo para as outras crianças. Resolveu queixar-se à sua mãe, levando pela mão a pretinha Zuli, que também não ganhou nada. Na praça, já se tinha acamaradado com outras que ficaram chupando dedo, de longe. Sua mãe, sendo tão poderosa, devia ter conseguido de Papai Noel alguma coisa. Uma freguesa prometera um brinquedo que nunca mais chegava. Mas o ideal de Tati, o que ela desejava mesmo, era uma bicicleta. Não a tendo obtido, retirou da gaveta Carolina e Gerê e arranjou-se com os dois. Manuela sentiu a solidão da filha. Amargurou-se ao vê-la brincar com Gerê, todo esfrangalhado, como sempre. Levou-a ao alto de Santa Teresa. Lá em cima, um português veio brincar com a menina, enquanto a mãe contemplava o oceano. Ao descerem do bonde, a noitinha, já a criança dormia no colo.
Na verdade, quem descia de bonde era só Manuela, porque a filha vinha descendo de bicicleta, uma linda e macia bicicleta, como não havia igual na praça. As outras crianças faziam ala para vê-la passar... E Tati passava fazendo vibrar as campainhas com orgulho, um pouco pálida, os cachos do cabelo esvoaçando... Sentia uma delicia enorme naquela corrida. O bondezinho chegou ao Viaduto, a mãe teve que acordá-la para a baldeação próxima. Foi o único trecho que Tati viajou de bonde, dormindo logo em seguida para retomar a sua bicicleta macia e velocíssima. Zuli, a pretinha, viajava na garupa...
Decorreram mais alguns dias. A noite de S. Silvestre estava quase... Nas ruas reinava alegria, tamanho o alvoroço da população às portas do Ano Novo. Compras, abraços, encomendas, convites, pressa. Parecia certo que desta vez a cidade inteira ia mesmo ficar feliz dentro de poucas horas. As freguesas de Manuela exigiam que ela terminasse depressa os vestidos a fantasia. A costureira trabalhava dobrado, ela mesma adiantando a compra dos aviamentos, escolhendo os figurinos.
Tati demorava-se muito no parapeito da janela vendo o mar, vendo a vida. No arranha-céu entravam centenas de embrulhos de encomendas. Que haveria dentro deles? interrogava. Que vontade de abri-los para ver o que tem dentro¡
Na calçada, nos ônibus, nos bondes, desfilavam os gigantes, gente que não brincava, ocupada sempre com qualquer coisa que Tati não compreendia e que era um mistério. As mulheres que passavam na praia pareciam-lhe divindades...
Algumas dessas divindades não costumavam pagar as contas. Manuela teve prejuízo. A dona da casa sabia disso. Entretanto, veio declarar a costureira que não podia esperar mais, o atraso já era grande:
—A senhora compreende, não é? Eu não quero desconfiar de ninguém... Longe de mim... Mas os impostos estão cada vez... A senhora sabe... Além disso, estamos no fim do ano, vem ai o reveillon, as minhas filhas precisam se divertir, tudo são despesas... A vida esta difícil.
Tati, chegando da praia no momento, interveio na conversa das duas mulheres:
—Fizemos uma montanha de areia, mamãe, que só você vendo...
—Espera, minha filha, deixa tua mãe conversar.
—... E lá em cima pusemos, sabe quem? Carolina...
—Em todo caso, prosseguiu a proprietária, ainda posso esperar uns três dias.
—Depois, continuava por sua vez Tati, fizemos um buraco que eu acho que vai sair na Europa...
—Não atrapalha, menina! gritou a costureira, afastando a filha. E virando-se para a proprietária:
—Mas a senhora podia deixar que eu levasse ao menos a maquina para terminar algumas costuras.
—Só se deixar a vitrola, como garantia.
A proprietária ficou satisfeita, as filhas teriam vitrola para dançar. E Manuela deixou correr uma lágrima.
Como a receberia sua irmã, em Deodoro? Começou a arrumar as tralhas, não se esquecendo de embrulhar alguns mantimentos para os primeiros dias. Telefonou a algumas freguesas pedindo pagamento, mas ou elas não se achavam em casa, ou não podiam pagar. Acabou vendendo, no dia seguinte, uma joia a mulher do térreo, para as despesas de carreto e passagem. A joia que Tati tinha pedido “quando ela morresse”.
Terrível o estrepito de trens e veículos da noite, ressoando aos ouvidos da criança, relampagueando pela janela aos seus olhos. Tati sentiu que a cidade não acabava mais. Só sua mãe nunca se perdia naquela floresta.
Sempre formidável, sua mãe!... Mas tão silenciosa!... Aconchegou-se bem ao colo dela. Viu passar coisas estranhas pela vidraça. Anúncios luminosos. Cinemas borbulhantes. Para onde estaria sendo levada dessa vez? Haverá criança no lugar aonde ia? Haverá mar? Que lhe estaria reservando sua mãe?
Tati inesperadamente teve a sensação paradisíaca de um lugar por onde passara, onde vivera entre delicias. Onde esse lugar, não se lembrava bem... Mas havia estado lá, acordada ou dormindo... Quanto tempo? Não era nos subúrbios, não era também na praia. Parecia-lhe que foi há muitos anos. Talvez no fundo do mar, debaixo das aguas... Antes de nascer.
Passaram Engenho Novo, Meyer, Piedade, Encantado, Cascadura... Manuela silenciosa, humilhada, fazia conjeturas amargas. Nunca mais voltaria a Copacabana. Da primeira vez perdera lá a virgindade, agora já ia ficando a maquina de costura. As freguesas, aquela hora, já se estavam preparando para o reveillon, muitas delas vestindo a fantasia que ela, Manuela, fizera com suas mãos, sem ter sido paga. E, agora, num carro de segunda classe, a caminho do subúrbio, lá se ia para a casa de uma irmã geniosa, a implorar-lhe favor, levando aquela criança, aquele trambolho!
A noite dos subúrbios apresentava aquela vez um aspecto diferente, meio pânico. Trens apinhados, correria, grupos gritando. Algum levante militar? Ou a busca da alegria, a corrida apressada para as festas?
Manuela está triste. Tati, irrequieta. A menina descobriu qualquer coisa ou alguém no banco do lado esquerdo. A todo momento se levanta, olha e ri.—Toma modos, minha filha!
Mas a pequena não se corrige. A mãe impacienta-se, dá-lhe um beliscão. Seu pensamento estava muito longe da filha, estava mesmo contra ela. Tati começa a chorar. Menos pelo beliscão do que pela hostilidade tão estranha que começava a pressentir na fisionomia de sua mãe. Como se a sua maior amiga pensasse em abandoná-la naquele momento. Tati está mesmo magoada. O carro de segunda classe tem pouca luz.
—Você é ruim, mamãe...
—Você não tem nada que estar olhando assim para essa mulher, repreendeu Manuela.
Tati se explica então entre soluços:—É a maminha dela, mamãe. A maminha dela nasceu no pescoço!...
—Fala baixo, que ela ouve. Aquilo não é maminha, minha filha é papo...
—Como é então que a gente pode mamar ali?
Manuela ri-se. Que bola! Ri muito, abraça a filha. Criança! Sente-a pela primeira vez. Que animalzinho feliz, despreocupado—sua filha! Tão viva! Enchia uma casa, um bairro; poderá encher uma cidade inteira. Olhou demoradamente para ela, encarou-a bem, como se fosse pela primeira vez. Tinha cachos, a boca fresca, os olhos grandes. E era linda!
Tati!
Ainda pode ser tudo na vida. Como é que não a descobrira antes? Só agora se rendia sem luta a filha que a vinha conquistando há tanto tempo, sem esforço. Pega de novo a rir. Esquece tudo. Nem sabe qual o subúrbio que passou pela janela. A menina não se espanta mais com o papo da velha. O que a espanta é o riso convulsivo de sua mãe. Está até com medo dela. Os passageiros pensam que a mulher enlouqueceu. Manuela aperta a filha ao peito, beija-a muitas vezes, rindo, chorando... Caíram-lhe os embrulhos ao chão. Os cacarecos estão sendo sacolejados. Alguns legumes rolaram, saíram pela portinhola. Uma mulher vem entregar-lhe uns paninhos:—Isso não é da senhora?
Manuela continua rindo, a olhar para a filha, a passar-lhe a mão pela cabeça.
—Eu adoro você, minha filha.
Vem se aproximando um estafeta do correio com um objeto na mão:
—Olha a sua caneca, minha senhora.
Manuela nem se lembra de agradecer. Estava-se passando dentro dela um acontecimento enorme.
Outros objetos foram sendo entregues pelo pessoal da segunda classe. Sob a bota de um português, Carolina está sendo pisada. Boneca infeliz, Carolina... A bota não era brinquedo. Tati dá um grito, corre até lá, salva Carolina. Só agora, vencida pela filha, a mãe começa a achar-lhe graça nos menores movimentos. E cheia de felicidade, envolve-a de novo no abraço.
Quem vem chegando agora, na direção de Manuela, é um operário:
—Olha a sua batata, minha senhora.
Manuela agarrada com Tati, Tati com Carolina—dormiram as três, até que a locomotiva apitou para Deodoro.
A costureira desce com cuidado, sobraçando a filha, Carolina e os embrulhos. Era preciso que a criança não acordasse. Tomou um caminho escuro. O que ia dar a casa da irmã. Tati abre um pouco os olhos, espia a espessura da noite. Está com medo.
—Tem Febrônio, mamãe?...
E adormece de novo. Passava ao longe um grupo com estandarte. Mas o caminho que a costureira trilhava era deserto.
—Não vá arranjar outro filho por esses matos ai, moça! gritou-lhe um soldado. Agora é hora dos bailes...
A mulher caminhava sem sentir cansaço. Outro dichote injurioso bateu-lhe apenas no ouvido:—Tão sozinha, meu bem!.. .
Não ia sozinha. Ia com Tati. A menina acordou de novo, ao som de uma canção que a mãe lhe cantava. As duas se entreolharam sorrindo. A primeira vez que Manuela sorri de fato para a filha. Ouviu-se uma zoeira enorme, ao longe, cortada de bombas e foguetes.
O ano virava. 1938.
Manuela galgou uma pequena colina. Chegou ao alpendre do bangalô da irmã. Tudo fechado e de luzes apagadas. No trinco da porta havia um escrito: “Fomos ao baile; pode bater que tem uma velha no fundo, tomando conta.” Não bateu. A noite de céu alto estava clara. Relanceou a vista pelos longes. De todos os horizontes vinham rumores e reflexos de festa, como se houvesse naquele momento uma tentativa universal de esquecer guerras, perseguições e misérias. O armistício do Ano-Bom. Manuela se esquece também de tudo, as agruras passadas e as que ainda prometiam. Sai a caminhar pelas estradas. Uma vaga de esperança enche seu coração. Tati esta vendo o céu.
—Aqueles furinhos todos são estrelas, mamãe? Todos?...
Sobre a relva da campina, Manuela começa a dançar como louca:
—É o Ano Novo, Tati, meu passarinho, meu tesouro... Precisamos também comemorar...
A costureira ergue Tati aos ombros. E, dentro da noite, comemora a entrada do Ano Novo, empunhando sua filha. E continua a dançar, carregando-a ao ombro, como um cântaro cheio de vinho.

—Daquele lado ainda tem mais estrelas, mamãe. Olha lá...

2 comentários:

  1. Este conto augusto, gigante pelo seu visceral humanismo,mostra que nem toda dor é pra gente carregar sozinho.Jogadas a própria sorte, como milhares de pessoas na terra brasilis e no mundo, Manoela e a pequena tati, entre muitos infortúnios e pedaços de ternura, vão construindo sua relação afetiva, sua tábua de salvação num mundo em convulsão, vão criando um antídoto contra a loucura que o desamor coletivo, este que vivemos em sociedade, criou.

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