domingo, 14 de fevereiro de 2016

85 – A Chave de Ferro – P. Calders

A Chave de Ferro
Pere Calders
Tradução Manuel de Seabra
A meio da tarde, quando a conversa decaiu, um dos dois amigos ergueu-se do sofá e percorreu toda a sala lentamente, contemplando os moveis e os objetos com uma curiosidade que nenhuma norma social podia impedir.
– Tens uma casa muito bonita, — disse.
O outro sorriu, lisonjeado. Acompanhava-o com o olhar, esperando o momento em que, depois de descobrir a vitrina, se sentiria intrigado pelo seu conteúdo. O visitante parou, efetivamente, diante do pequeno aparador e prestou uma grande atenção aos objetos expostos. Finalmente, perguntou com ar brincalhão :
– As três chaves são para fechar o livro ? Acho demais e de um tamanho exagerado, a não ser que o Diário de Elena C. tenha um interesse excepcional. É algum membro da tua família ?
Vou responder-te pela mesma ordem, – disse o amigo fingindo uma divertida gravidade. — As chaves, como tu próprio pedes ver, não pertencem ao livro, mas estão relacionadas com ele de uma maneira direta. O diário, num certo aspecto, tem um interesse excepcional. E Elena C. não é nenhuma dama de minha família, mas esta fortemente vinculada as recordações do meu pai, mas não no sentido que tu já estas a designar.
E dirigindo-se a vitrina, acrescentou :
– Não julgues que se trata de um diário banal de rapariga. Olha.
Pegou no livro e abriu-o no sítio assinalado por uma fita amarela. Uma letra miúda, de educação conventual, enchia uma pequena parte da pagina, deixando grandes margens brancas : «4 de fevereiro de 1902. Hoje abri o armário. Oh, é horrível! Compartilho dum segredo que desejaria nunca ser descoberto. Procuro em vão palavras para me exprimir. A caneta seca-me ao tentar descrever o que os meus olhos contemplaram. Renuncio a fazê-lo por agora e parece-me que nunca me será possível.»
– Que te parece ?
– Que estilo ! Hás-de deixar-me ler todo o diário.
– O resto não te interessaria. Está cheio de uma afetação insuportável. Mas, mais para diante, volta ao tom misterioso.
Passou algumas folhas e apontou para as seguintes linhas : «:20 de fevereiro de 1902. Então continha efetivamente qualquer coisa! Mas, como é possível que eu não tivesse visto ? Trata-se de um fundo falso que até agora a policia não descobriu ? Portei-me estupidamente. Hoje prenderam-no e toda a gente julga que eu me verei comprometida na investigação. As minhas amigas, apesar de ar compungido que fingem a minha frente, tem uma inveja terrível.»
– E não há mais nada ?
– Não.
– E as chaves ?
– As chaves e o diário serviram ao meu pai num processo que, no seu tempo, lhe deu uma grande notoriedade. Alguém pagou um preço muito elevado por um crime de que foi acusado.
– Conta-me.
Pouco posso dizer. O meu pai evitava sempre referir-se a este caso. Muitas vezes tive a impressão de que ele conservava dúvidas tão grandes que o inquietavam ainda. Imagina a importância que tudo isto deve ter tido em determinada época da minha infância. Vês? Há duas chaves de ouro e uma de ferro. Uma das de ouro é a original e as outras são as copias.
– Como sabes ?
– Foram submetidas a um exame e parece que pelo menos isso ficou bem esclarecido. O meu pai atalhava todas as perguntas que lhe fazíamos e as vezes até reagia com violência, o que era realmente extraordinário tendo em conta o seu caráter pacífico. Mas eu insistia, a despeito de tudo, sem conseguir nada. Numa ocasião, o meu pai teve um impulso que me surpreendeu. Agarrou-me por um braço, levou-me diante da vitrina e disse, como se falasse mais para si próprio do que para mim : «A chave de ferro poderia explicar todo o mistério. Tenho o pressentimento disso desde o primeiro dia. Mas também tenho a intuição de que nunca ninguém saberá nada.» Disse estas palavras num tom profético. Poucos dias depois morreu — já sabes em que circunstâncias — e desde então convenci-me de que se tratava de uma profecia a sério.
– Não está direito. Se não estas em condições de me satisfazer a curiosidade não devias tê-la despertado com a exibição da vitrina. Eu estava tão tranquilo e agora vou ter o nervoso de desconhecer um drama que não me afeta e que decorreu ha quarenta e cinco anos.
Os dois amigos sentaram-se novamente e a cordialidade não impediu que uma atitude pesarosa os acompanhasse durante o resto do serão.
Mas quem nos impede, a nós, de sabermos alguma coisa mais?
Tudo começou numa pequena cidade burguesa, onde os bons costumes não deixavam lugar para murmúrios e na qual uma plácida maneira de viver fazia que não acontecesse nada de extraordinário.
Um cidadão insignificante, que uma regular fortuna punha a coberto das preocupações materiais, sentiu despertar dentro de si uma ambição que o impelia a significar-se, e inventou um artifício com o qual, ao princípio, se deu bem. Conhecedor da necessidade de criar um clima de mistério, dava a entender que sabia muito mais coisas do que as que podia dizer, e quando conseguia ter em suspenso os seus interlocutores, baixava lentamente a mão que pusera sobre o peito e deixava-a deslizar pelo colete florido, até encontrar a corrente suspensa entre os dois bolsos. Metia lá o indicador, mostrava de uma maneira discreta a chave de ouro pendurada numa das argolas e movia o dedo, balançando-a.
Esperava. Às vezes a conversa ainda continuava um bocado, mas havia sempre alguém que acabava por perguntar :
– E esta chave de ouro?
Então, fingia um estremecimento. Deixava a corrente bruscamente e, com a mesma mão, avançando-a como se quisesse fazer parar qualquer coisa, impunha silêncio com um gesto e dizia :
— Isso não, por favor ! Todos temos os nossos segredos para os quais pedimos a discrição dos outros.
E a chave e as palavras seguiam lhe dando um prestígio que lhe servia para prosperar.
Criou uma técnica de assembleia, de comitê, e de conselho. Insinuava soluções seguras que o peso de um juramento o impedia de revelar e, antes das votações, solicitava a palavra e dedicava-se a um pequeno jogo: tinha solto a corrente das casas que a seguravam e apertava-a com força no punho cerrado, deixando aparecer a chave por entre os dedos. De pé, entre toda a gente sentada, girava em redor de um eixo invisível e, mostrando a mão fechada, pronunciava um discurso incoerente e no fim pedia que a inteligência dos ouvintes fizesse o esforço de ler ou entender entre as palavras o que a discrição não lhe deixava dizer claramente. Havia sempre alguém que traduzia em ideias e projetos elevados as suas frases em conexão.
Depois, esmagado pela tensão desenvolvida, erguia as abas do sobretudo e sentava-se, semicerrando os olhos enquanto devolvia a corrente ao seu lugar, fingindo que o movimento dos dedos e dos elos era um tique inconsciente dos nervos.
Quase sempre saía eleito. Tinha cargos municipais, presidia a juntas de todas as espécies e, como era o único cidadão com uma lenda, tinha fama de ser o mais interessante.
Vivia num pequeno palácio rococó, estocado de cor-de-rosa, com caras de anjos em pedra, espirais e tranças de flores alternando com cestos e capitéis insolentemente inúteis. No jardim, ao pé dos degraus da entrada, havia a figura de um cão de bronze, com as orelhas espetadas e a rigidez de uma vigilância metálica.
Quando alguém se interessava pela figura, ele tinha a vaidade do proprietário que fala de singularidades da raça canina e de antecessores inúteis e, com a bengala, apontava para as letras em relevo do pedestal : «Fundição de Pignone. Firenze.»
A casa tinha dependências para todos os fins e necessidades. Mas a mais importante era a que continha o armário isabelino, o que era aberto pela chave de ouro.
Ao colocá-lo ali, chamou todos os criados e disse :
– Fiquem sabendo que tem a minha confiança, o solido bem pensar das pessoas justas. Deixo-os por e dispor segundo o trabalho de cada um e têm chaves que abrem todas as fechaduras. Nunca lhes perguntei por que razão entram ou saem de uma sala, nem que espécie de pó escondido os faz remexer nas gavetas. Mas de hoje em diante proíbo-lhes uma coisa: ninguém se aproximara deste armário, nem mesmo com o pretexto de procurar limpezas de conjunto. Mantenham tudo em bom estado, que o brilho das madeiras caras, da prata e do mosaico traduzam o bem estar deste lar. Varram, esfreguem, a passem tudo a pano, mas que ninguém se aproxime deste armário! Que o vosso cuidado prolongue a vida dos objetos, que tudo apresente a cara da limpeza, ainda que estes cuidados tornem mais visível o abandono em que teremos o armário. Só eu possuo chave que o abre (mostrou-a). Se alguém tentar arrombá-lo, os meus bons sentimentos transformar-se-iam em maldade e não descansaria enquanto não me vingasse. Agora, vão as vossas obrigações e nunca se esqueçam das minhas ordens.
Assim nasceu a lenda. Os criados divulgaram-na e as outras pessoas tomaram a seu cargo o trabalho de a tornarem mais completa.
Na cidade havia homens ilustres pelo sangue, que toda a gente respeitava. Havia outros que, pelo talento e estudos, ou pela riqueza, ou porque haviam trabalhado em qualquer atividade que servia o interesse publico, recebiam honras e considerações. Mas só ele tinha um armário proibido e uma chave de ouro para o abrir.
Muitas imaginações trabalharam para tentar explicar as coisas que ele sugeria. As pessoas pouco inclinadas a fazer esforços atribuíam-lhe uma fortuna ciosamente guardada, mas o cheque com a logica mais elementar desarmava-os. Outros inclinavam-se a acreditar na existência de uns documentos que não podiam vir a publico, sem explicar por que razões. Mas, como no caso do dinheiro, que sentido teria substituir o cofre forte pelo armário?
Circulava também a versão de um amor infeliz, e o móvel guardaria, então, as suas relíquias: cartas e presentes sentimentais, miniaturas com retratos, floras secas e, talvez, pedaços de roupa com poder evocador. Aqueles que eram partidários desta historia, aplicavam o seu engenho em relacionar a figura pouco elegante do protagonista com uma história romântica.
Um pequeno circulo inclinava-se a crer que o armário continha um cadáver, habilmente embalsamado, e que muitos anos se passariam antes de se poder saber a quem pertencia. E os mais sutis murmuravam que tudo aquilo escondia uma grande vergonha, sem que eles próprios regateassem o prestígio que significava guardar tal vergonha com uma chave de ouro.
E ele, guarda do mistério, conhecia todas as interpretações e flutuava na fama que estas lhe criavam, mantendo-se a boiar numa situação invejável.
Não conseguia evitar tomar um partido. Ele próprio, e bem a sós, sentia-se possuidor de um segredo de sangue vertido e, enquanto lhe durava esta visão íntima, comportava-se sombriamente, passando muitas vezes a mão pela testa, enquanto cerrava os lábios. Em certa ocasião, vivendo o seu papel, deixou sem pinga de sangue um grupo de amigos com o seguinte solilóquio:
– Por mais débil que seja o lago entre a vida e a morte, apenas Deus o pode desfazer. Só Deus ! Quem se atrever a tomar por suas mãos esta prerrogativa divina conhecera o peso duma maldição terrível...
Baixou a cabeça, sem encarar o olhar de ninguém durante muito tempo.
Outra vezes, inclinava-se para aqueles que acreditavam em documentos escondidos e agia como se lhes desse razão! Tomava um ar ausente e dizia, por exemplo : «Que poder o da palavra escrita ! Quantas linhas de tinta vermelha sobre papel amarelo poderiam modificar o curso das coisas se as divulgasse! A responsabilidade de quem tenha ao seu arbítrio conservá-las secretas ou dá-las a conhecer é uma triste herança.»
Havia épocas em que a sua maneira de agir desorientava e o armário revestia-se de uma importância mítica. Parecia que continha ao mesmo tempo as relíquias de um amor, o cadáver, os documentos de interesse público e o dinheiro.
Mas, como as suas faculdades de paixão eram escassas e não se podiam dispersar, o fato de se concentrar num único objetivo acabou por dominá-lo. Em redor do armário, na sua imaginação, ia-se formando um halo que o afastava das coisas conhecidas.
Sem que ninguém pudesse adivinhar as razões, um medo cheio de pureza convertia-se no tema central da sua vida. De noite, quando o sono de todos os objetos inanimados punha mais silêncio na casa, ele tapava a cara com a dobra do lençol e via, como se pudesse penetrá-la com o olhar, a penumbra de todas as peças, o rosto inimigo dos móveis e os ornamentos espiando alguma presa indefinível e ao centro de tudo, irradiando fosforescência, o armário com a gravidez de um verdadeiro mistério.
«É o medo verdadeiro», — pensava. — «0 medo de sempre que acompanha a noite. A lenda não passa de uma criação tua e podes destrui-la agora mesmo, torná-la clara, para abrir o teu espirito a chegada do sono.»
Mas a sua fantasia, incapaz de se desenvolver em duas atividades contraditórias, teimava em fornecer-lhe os elementos que o conservavam mais inquieto. Faltava-lhe a coragem de fechar os olhos, no receio de que as coisas imóveis estivessem só a espera que a vontade o abandonasse para se entregarem a terríveis lutas.
Quando a luz do dia devolvia o aspecto habitual à casa e a tudo que continha censurava-se gravemente, porque o orgulho de saber que a lenda tinha bastante força para o dominar a si próprio, dava-lhe uma visão mais extensa da maneira de servir-se dela Apesar disso, a companhia dos criados era insuficiente e, de uma maneira lenta e inconfessa, com se quisesse fazer uma surpresa a si mesmo, veio-lhe a ideia de se casar.
Dedicou-se a uma escolha em que o sentimento amoroso não participava e estabeleceu um plano de acordo com a técnica que lhe era mais familiar. Escolheu uma menina de boas famílias, pouco solicitada. e pediu-a de uma maneira singular, no curso de uma entrevista com a rapariga e os pais.
– Ainda não            me decidi a tomar novo estado, – disse-lhes. – Mas, no dia em que o fizer, a minha esposa entrara de posse dum pequeno império. Certas indiscrições dos meus criados, que a bondade me impede de reprimir, fazem que seja conhecido o bem estar da minha casa e a liberalidade que uso na administração doméstica. A minha mulher compartilhará tudo comigo, será dona, e só lhe proibirei uma coisa : nunca fará perguntas sobre o armário, e muito menos tentará abri-lo. E até onde lhe for possível, nem sequer se aproximará dele. Acham que, com estas condições, poderei arranjar mulher?

A menina acedeu e, quando as amigas lembravam a maneira como o seu noivo se afastara de todos os ideais que tinham forjado, ela provocava a inveja delas respondendo que isso era verdade, mas que teria oportunidade de saber qualquer coisa do armário.
Celebraram o casamento atendendo a todas as conveniências e iniciaram a sua curta vida matrimonial.
Um dia, enquanto o marido estava a rever uns ofícios, ouviu um grito que se espalhou por toda a casa. Ergueu-se de um golpe e a borla do seu barrete de veludo ficou a dançar-lhe diante dos olhos.
«E lá em baixo», — pensou. — «No armário.» Instintivamente, relacionava com aquele móvel qualquer coisa insólita. Correu, arregaçando com as mãos as abas da bata e desceu a escada aos pequenos saltos.
Os criados corriam levando-lhe vantagem, e ao ver de longe o armário com o batente meio aberto, fê-los parar com um grito: «Que ninguém dê um passo mais!»
Os criados ficaram quietos e ele abriu caminho com os cotovelos, afastando-os. A sua esposa estava estendida por terra, desmaiada. Um remoinho de roupa e rendas envolvia o pouco de carne visível: os braços, com a pele muito pálida, e o rosto, tão encerado que a morte se podia refletir lá.
Saltou por cima do corpo e fechou a porta do armário, sem se atrever a olhar lá para dentro. Introduziu a chave de ouro na fechadura e deu duas voltas, inseguras pelo desconhecimento do que guardavam.
Baixou-se para assistir a mulher e, ao fazê-lo, indicou com um gesto aos criados que o ajudassem. Levaram a senhora para um sofá e um foi a procura de sais aromáticos.
O marido observou que ela tinha a mão. direita fechada, apertando qualquer coisa com força. Abriu-lhe e retirou uma chave de ouro como a sua. «Uma  cópia, — pensou. — Mas, como pode ser isto ? Ah, sim ! Um molde em cera. Aproveitando a intimidade para me apanhar de surpresa!»
Quando a esposa deu sinais de retomar o domínio dos sentidos, lançou a chave diante dos seus olhos e perguntou-lhe :
– Que significa isto ?
– Oh, monstro !—gritou ela. — Quero voltar imediatamente para casa da mamãe!
Aquilo era desconcertante. Em múltiplas reflexões, planeara uma atitude para todas as situações previsíveis. Sabia que lhe seria difícil dominar o estupor do curioso que, furtivamente, comprovasse a ausência de elementos misteriosos no armário, e de que insinuações teria de servir-se para lhe dar a entender que a aparência de normalidade encobria muitas vezes os segredos mais impenetráveis.
Retirou-se para um canto da sala e, aguentando o queixo com a mão direita, começou a meditar diante do busto de Julio Cesar que o fitava com um olhar de mármore sem pupilas, tão ausente como o seu. «Com que então, — pensou, — deve ser verdade a versão do cadáver oculto. Nem dinheiro, nem documentos, nem recordações produziriam um efeito destes ao serem descobertos. Sou um homem devorado pela minha própria lenda!»
A dama ergueu-se de um salto, dirigiu-se para o quarto e saiu imediatamente embrulhada num xale.
– Amanha mando buscar as coisas que me pertencem.
– Para onde vais ?
– Para casa !
Teve vontade de lhe dizer que a queria acompanhar, que não era capaz de resistir sozinho à proximidade do armário, mas ela fê-lo parar manifestando-lhe repugnância.
Depois da porta ter batido, os criados retiraram-se e ele experimentou a sensação de solidão e desamparo diante do enigma fechado entre paredes de madeira.
Nem por um momento lhe ocorreu a possibilidade de abrir o móvel e enfrentar corajosamente o seu conteúdo. A simples menção de uma desgraça fazia-o perder a saúde, e só de pensar na existência de um corpo morto em sua casa fazia-lhe andar a cabeça à roda e tinha de se encostar a mesa ou cadeira que estava mais perto.
Seguiram-se dias durante os quais uma nova angustia o foi dominando. O cheque regular da pulsação arterial sincronizava-se obscuramente com um bater que, na sua opinião, tinha origem no armário e ecoava por toda a casa. Com um sorriso amargo, evocava a imagem de um explorador perdido na selva, perseguido dia e noite por um tantã que lhe indicava um perigo sem lhe mostrar o caminho da fuga.
De manha, à luz do sol, tentava serenar dando uma nota favorável às suas reflexões, e repetia que ele próprio comprara o imóvel, o colocara ali, e que ele próprio, também, era o autor do logro primário a que devia o prestígio. Mas a lembrança da conduta da esposa destruía subitamente as cogitações amáveis : «Não, não !»— murmurava. — «0 grito e o desmaio foram causados por qualquer coisa a margem da minha fantasia. Ouvi dizer que, muitas vezes o homem é apanhado pelas ratoeiras que arma para os outros, e foi precisamente isso que me aconteceu.» A curiosidade que durante tanto tempo cultivara nos outros, conhecia-a agora ele, com uma força superior
Esperava que a esposa contasse a experiência que vivera e que alguém, animado de bons ofícios, lhe desse a conhecer o segredo.

Na própria noite da separação, os pais mostraram uma insistência lógica por saber as causas que a tinham motivado, mas ela evitou as perguntas com as seguintes palavras :
– A ninguém direi o que aconteceu. Nunca mais quero voltar para o meu marido, e as pessoas que me estimem a serio, será melhor que desde este momento não façam mais referencias ao meu casamento.
Depois fechou-se no quarto, sentou-se diante numa pequena secretaria e abriu a gaveta onde guardava o seu diário. Folheou-o com saudade, releu algumas linhas, riscou outras e, por fim, escreveu : «0 armário estava vazio. Só esta tarde consegui ter a copia da chave. Esperei a melhor ocasião, abri-o e ao verificar que não continha nada, que a única coisa que me impelira ao matrimônio com um homem como ele, era um logro, dei um grito de raiva e perdi os sentidos. Não direi nada a ninguém, porque as minhas amigas ligar-me-iam para sempre a uma historia grotesca. Mas não voltarei nunca mais para o meu marido.»
Mordeu delicadamente a ponta da caneta e ergueu os olhos numa atitude meditativa. De súbito, lembrou-se que a intimidade dos diários acaba sempre por ser violada (que graça haveria em escreve-los se assim não fosse?—pensou), e tomou outra resolução. Arrancou a pagina e queimou-a.
«Hoje abri o armário. Oh, e horrível ! Compartilho de um segredo que desejaria nunca ter descoberto. Procure em vão as palavras para me exprimir. A caneta seca-me ao tentar descrever o que os meus olhos contemplaram. Renuncio a fazê-lo por agora e parece-me que nunca me será possível.»
Desta vez ficou verdadeiramente satisfeita. Guardou o diário e estendeu os braços para dar as boas vindas ao sono. Despiu-se, sonhadora, e meteu-se na cama.
Quinze dias depois, o amor próprio produziu-lhe uma outra preocupação. Para se libertar, redigiu uma breve nota, protegeu-a com am sobrescrito fechado e entregou-a a uma criada de confiança para que a levasse ao marido.

As pancadas rítmicas não tinham parado um só momento. Tentando evadir-se, andava de um lado para o outro da casa cantando com uma voz fina e assustada as canções que mais companhia lhe podiam fazer.
Mas que logro tão fraco para uma obcecação tão importante ! O armário estava ali, à espreita, e o medo acompanhava-o por toda a parte. Muitas vezes, levado pelo desespero, aproximava-se do armário disposto a abri-lo, mas faltava-lhe a coragem e deixava-se cair em qualquer assento, de cabeça baixa e as mãos agarradas apertando os dedos.
Assim foi surpreendido pela criada que lhe trazia a carta. Ouviu uma ligeira discussão à porta, uma voz que insistia em lhe entregar uma coisa pessoalmente, e dai pouco lia:
«Surpreendi o vosso segredo. Sei que o armário não contém nenhum elemento misterioso, ou melhor: não contém nada. Tive necessidade de lhe dizer isto para que não fizesse especulações a volta de uma pretensa parvoíce minha. E além disso porque tenho de o incitar a continuar indefinidamente essa história.
«A minha reputação, neste caso, está tão ligada ao armário como a sua, e a verdade encher-me-ia de ridículo. Queime esta carta, considere definitiva a nossa separação e tome todas as precauções para que essa farsa inventada continue a suscitar o interesse das pessoas, como até agora.»
Seguiam-se umas frias palavras de despedida, mas ele nem as leu. Ergueu-se, radiante, enchendo os pulmões com uma grande inspiração. «Então não passava de uma parvoíce minha!»— exclamou. Rasgou a carta e atirou-a para a lareira.
Passou do abatimento mais profundo a uma euforia que abarcava todas as suas esperanças. Pensou ir imediatamente ao clube rever os velhos amigos; balançaria a chave de ouro e mostrar-se-ia mais sutil do que nunca. Aproximava-se a eleição do novo presidente da Câmara e voltou-lhe uma antiga ambição.
Vestiu o sobretudo de gola de pele e o chapéu cor de café. Antes de sair parou diante do armário e pensou : «Amanhã de manhã abri-lo-ei, num ato simbólico de afastamento de todos os receios.» Fez-lhe, com a mão, um gesto carinhoso e, ao aproximar-se, pisou uma poça de sangue. Pela fresta inferior do batente da porta, caiam gotas lentamente e a mancha aumentava. Mas ele nem reparou.
Deixou pegadas vermelhas nos azulejos do vestíbulo e pequeno tapete da entrada. O cascalho do jardim limpou-lhe as solas, e ao carregar todo o seu peso sobre a pedra do passeio, com os passo seguros de um homem que fugia a um pesadelo, já não o delatava nenhum vestígio.

Achou que a noite estava muito agradável e afirmou o propósito de ir ao clube com a assiduidade de antes. Mas estava escrito que nunca mais lá voltaria.

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