sábado, 23 de janeiro de 2016

82 – Carta da Herdade – F. Espanca

Florbela Espanca (1894-1930) poetisa portuguesa nascida no Alentejo. “Carta de Herdade” não é propriamente um conto, mas sim uma carta que ela escreve ao ‘amigo longínquo e querido’, em Junho de 1930, quando do lançamento de Charneca em Flor e  poucos meses antes de decidir acabar com sua própria vida, onde é bastante eloquente o amor que ela sentia pelo irmão que morto tragicamente em um acidente de avião em 1927.

Carta da Herdade
Florbela Espanca

Amigo longínquo e querido:
Apresento-lhe a charneca ao entardecer, a minha triste charneca donde nasceu a minha triste alma. Selvagem e rude, patética e trágica, tem a suprema graça, cheia de amargura, dos infinitamente tristes, a quem foi negada a doçura das lágrimas. É enorme e é simples; fala e escuta. O que eu lhe tenho ouvido! O que eu lhe tenho dito! Toda morena do sol, que a queima em verões sem fim, e como eu uma revoltada, sem gestos e sem gritos. Nesta hora do entardecer, toda ela palpita em misteriosas vibrações, toda ela é cor, vida, chama e alvoroço, contido e encadeado por uma secreta maldição!
Mas como ela é bonita, a minha charneca!
Borboletas azuis, minúsculas, tombam lá do alto como bocadinhos de céu. Outras roxas... as urzes, talvez, a que, por milagre, tivessem nascido asas. Os crepúsculos, nestas imensas extensões, são longos, longos; um êxtase que se prolonga e que chega a fatigar-nos. O sol constela o poente de pedrarias, e são uma maravilha os montes azulados de Espanha, brumas perdidas ao longe, vagas, aéreas, irreais
A noite desce por fim, arrastada, luarenta, uma claridade que se confunde com o crepúsculo.
Voltam os homens do trabalho, volta o gado ao seu estábulo caiado como uma ermida. Ladram os cães, festivos, enchendo o silêncio de brados. Começa a cegarrega dos grilos. Cai no espaço, como gotas de água, o lamento dos sapos sequiosos.
Volto para o grande monte iluminado, lá ao fundo, lentamente, sem grande pressa de chegar. A noite envolve-me toda, anestesia-me, mãos pálidas e suaves que afagassem devagarinho um mendigo leproso. Sinto-me mais pura nesta pureza imensa, mais limpa, mais lavada de culpas do que se tivesse nascido agora.
O grande cão de guarda, o Morgado, caminha ao meu encontro, solene e grave, a dar-me as boas-noites como quem cumpre uma missão diplomática. Baloiça o farto penacho da cauda como uma pluma doirada. Há nos seus olhos, cor de tabaco loiro, ao fixar-me, qualquer coisa de humano, de compreensivo," de caricioso: a sua linda alma de cão que não sabe que tem alma. Numa amabilidade de bruto, roça-se por mim sem nenhuma piedade pelo meu vestido branco, onde as grandes patas desenham a carvão flores desgrenhadas em tragos futuristas, e o meu rosto tenta-o para um beijo amigo que — ingrata! — resolvo desdenhar, sem explicações supérfluas. Não se aproxima do monte para onde me dirijo: solitário, sente o máximo desprezo pelas multidões ululantes; aristocrata, tem horror aos gritos e às vozes sonoras dos seus outros irmãos de sangue vermelho, de raça plebeia. Fica de longe a ver-me, e o seu olhar, que me segue, dá-me uma impressão de calor, de bem-estar, de ternura, como um olhar humano. Adivinho que tem piedade de mim, que me estudou nos nossos longos passeios solitários pela planície, que sabe no que eu penso e o que eu vim esquecer, que vê como os fantasmas me saem ao caminho. Aquela sombra, ao longe, não será aquele meu irmão, cavaleiro de lenda, que um dia partiu para não voltar? Quem sabe! Amigos vivos que me morreram, amigos mortos cheios de vida, quem sabe se, como eu, o luar os tenta nesta doce noite misericordiosa e pura! Estendo as mãos ao luar branco, como a uma fogueira, e a recordação doutros beijos enche-me da nostalgia amarga dos que se sabem exilados para sempre. Ergo os olhos ao céu: um jasmineiro florido, longe, longe! As estrelas empalidecem deslumbra- das, elas também, pela brancura milagrosa.
0 Morgado é agora uma grande sombra imóvel. Que pensará, ele também, sozinho, na imensidade da charneca luarenta?... Ouve-se mais próxima a algazarra da chegada, no monte iluminado. O vozeirão dos homens, as vozes mais agudas das mulheres, o tropear dos machos nas pedras do pátio formam uma sinfonia bárbara que perturba a noite nos seus sonhos de paz.
A senhora lavradora, o senhor lavrador, os filhos e os netos rodeiam-me solícitos e acolhem-me com um sorriso claro. Naqueles rostos, tostados de sol, o sorriso é uma fo­gueira a arder. Calada, sento-me a porta, e enquanto os arabescos azulados do meu «Muratti’s», saboreado com volúpia e olhado com reprovação, traçam no ar palavras que não entendo, outras palavras recordo; erguidas do mais profundo de mim mesma como dum túmulo, mortas que não querem morrer, que não se resignam a fria mortalha do esquecimento em que um dia as envolvi, para as sepultar    
Janela aberta, noite alta, o luar canseiroso vem ainda dar a última demão de cal às paredes do meu quarto, e quando o sono me vem, enfim, fechar os olhos, ainda fica a trabalhar até de madrugada, até a esse instante em que a andorinha, a primeira ave acordada, solta o seu grito de oiro e atravessa, como uma flecha, o céu ainda pálido sobre a charneca ainda adormecida.
Amigo, longínquo e querido, a triste charneca desdenhada envia-lhe, em nome doutra desdenhada ainda mais triste, um braçado de saudades acabadinhas de colher.
Alentejo, Junho 1930

Maria

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