sábado, 29 de agosto de 2015

62 – O procurador da Judéia – A. France

Anatole France (1844-1924), escritor francês nascido em paris e vencedor do Premio Nobel de Literatura. Neste conto, um dos clássicos da literatura Mundial, ele nos apresenta um Poncio Pilatos envelhecido, comentando sua visão – bem romana – sobre os acontecimentos de Judeia.
O procurador de Judéia
Anatole France
L. Aelio Lâmia, natural da Itália e filho de pais ilustres, não deixara ainda de usar a pretexta quando foi estudar filosofia nas escolas de Atenas. Depois fixou-se em Roma e, na sua casa de Esquilies, passou a levar uma vida de prazer na companhia de um grupo de jovens debochados. Acusado, porém, de manter relações criminosas com Lépida, mulher de Suplício Quirino, uma alta personagem consular, e reconhecido culpado, Tibério César exilou-o. Ia fazer nessa altura 24 anos. Durante os dezoito que durou o seu exílio, percorreu a Síria, a Palestina, a Capadócia, a Arménia, fez demoradas estadias em Antióquia, em Cesaréia, em Jerusalém. Quando, após a morte de Tibério, Caio subiu ao trono imperial, Lâmia conseguiu autorização para regressar a Roma. Recuperou mesmo uma parte dos seus bens. A desgraça tornara-o sensato.
Evitou as relações com mulheres de condição livre, não procurou obter cargos públicos, manteve-se alheio às honras e viveu retirado na sua casa de Esquilino. Passando ao papel tudo quanto vira de notável nas suas remotas viagens, transformava, segundo ele próprio dizia, as penas passadas no divertimento das horas presentes. E, enquanto se entregava a estes pacíficos trabalhos, ao mesmo tempo que ia meditando longamente acerca dos livros de Epicuro, viu com surpresa e desgosto aproximar-se a velhice. Aos sessenta e dois anos, atormentado por um incómodo resfriado, foi tomar as águas de Baies. Esta praia, outrora tão do agrado dos anciãos, era então muito frequentada pelos romanos ricos e ávidos de prazer. Havia uma semana que Lâmia vivia só  e sem nenhum amigo entre essa brilhante multidão, quando, certo dia, depois de jantar sentindo-se bem disposto, deu lhe na cabeça subir as colinas que cobertas de pâmpanos semelhantes a bacantes, olham lá do alto as vagas.
Tendo chegado ao cimo, sentou-se à beira de um carreiro, debaixo de um terebinto e espraiou o olhar pela bela paisagem. A sua esquerda estendiam-se, lívidos e nus, os campos Flégreos, até as ruínas de Cumos.  A sua direita, o cabo Miseno espetava o agudo esporão no mar Tirreno. A seus pés, para ocidente, a rica Baies, acompanhando a graciosa curva da praia, ostentava os seus jardins, as suas vilas povoadas de estátuas, os seus pórticos, os seus terraços de mármore, a beira do mar azul onde brincavam golfinhos. Em frente, do outro lado do golfo, na costa da Campânia, dourada pelo sol já em declínio, brilhavam ao longe os templos, coroados pelos loureiros de Pausílipo, e muito ao fundo do horizonte fumegava o Vesúvio.
Lamia tirou de uma dobra da sua toga um rolo contendo o Tratado acerca da natureza, estendeu-se no chão e começou a ler. Mas os gritos de um escravo intimaram-no a levantar-se para dar passagem a uma liteira que trepava o estreito carreiro entre as vinhas. Aproximando-se da liteira toda coberta, Lamia viu, estendido nas almofadas, um velho muito corpulento que de testa apoiada na mão, fitava em volta um olhar orgulhoso e sombrio. O seu nariz aquilino descaía para cima dos lábios que esmagavam um queixo proeminente e as poderosas maxilas.
Lâmia teve a impressão de que conhecia aquela cara. Hesitou, porém, um momento no nome da personagem. Depois, subitamente, lançou-se para a liteira num impulso de surpresa e de alegria.
– Poncio Pilatos! –  exclamou ele. – Graças aos deuses, tenho a sorte de voltar a ver-te.
O velho, fazendo sinal aos escravos para se deterem, fixou com um olhar atento o homem que o cumprimentava.
– Poncio, meu caro anfitrião – prosseguiu aquele – os vinte anos que passaram embranqueceram-me os cabelos e cavaram-me as faces a tal ponto, que já não reconheces o teu Aelio Lâmia.
Ouvindo este nome, Poncio Pilatos desceu da liteira com toda a pressa que lhe permitiam a idade e o porte. Abraçou duas vezes Aelio Lâmia.
– Claro que tenho o maior prazer em voltar a ver-te – declarou ele. – Recordas-me os tempos antigos, quando eu era procurador da Judeia, na província da Síria. … a primeira vez que estou contigo desde ha trinta anos. A ultima foi em Cesárea, onde arrastavas o aborrecimento do exílio.
Tive a felicidade de conseguir aliviar-te um pouco e, por amizade, Lâmia, seguiste-me até essa triste Jerusalém, onde os Judeus me encheram de amargura e desgosto. Tu foste, durante mais de dez anos, meu hospede e meu companheiro, e ambos, ao falarmos da Cidade, nos convolávamos mutuamente, tu dos teus infortúnios, eu das minhas grandezas.
Lâmia abraçou-o novamente.
– Não disseste tudo, Poncio: esqueceste-te de que intercedeste por mim junto a Herodes Antipas e de que puseste generosamente a tua bolsa a minha disposição.
– Não falemos disso – retorquiu Poncio – uma vez que mal regressaste a Roma, me remeteste por um dos teus escravos libertos o dinheiro suficiente para me reembolsar com juros.
- Poncio, não creio que o dinheiro possa resgatar a minha dívida para contigo. Mas diz-me os deuses tem-te sido favoráveis? Desfrutas da felicidade que mereces? Fala-me da tua família, da tua fortuna, da tua saúde.
– Retirado na Sicília, onde tenho propriedades, cultivo e vendo o trigo que produzo. A minha filha mais velha, Púncia, a quem tanto amo, depois de enviuvar, foi viver comigo e é ela quem governa a casa. Graças aos deuses, conservei o vigor do espírito; a minha memória não enfraqueceu. Mas a velhice vem sempre acompanhada de um longo cortejo de dores e de enfermidades. A gota faz-me sofrer horrivelmente. E agora mesmo encaminho-me para os campos Flégreos em busca de remédio para os meus males. Essa terra ardente, de onde, a noite, brotam chamas, exala uns acres vapores de enxofre que, segundo dizem, acalmam as dores e restituem a maleabilidade as articulações dos membros. Pelo menos é o que os médicos garantem.
 Desejo que isso te faça bem, Poncio! Mas, apesar da gota e dos grandes sofrimentos que esta provoca, tu pareces ter a mesma idade que eu, embora contes mais dez anos. Não ha duvida de que conservaste um vigor como eu nunca tive, e sinto-me satisfeito por te encontrar tão robusto. Por que motivo, meu caro, renunciaste tão cedo aos cargos públicos? Por que razão, ao abandonares o governo da Judeia, te exilaste voluntariamente nos teus domínios da Sicília? Esclarece-me acerca do que fizeste a partir da altura em que deixei de ser testemunha dos teus atos. Preparavas-te para reprimir uma revolta dos Samaritanos quando parti para a Capadócia, onde tinha a esperança de ganhar algum dinheiro a criar cavalos e mulas. Não voltei a ver-te depois disso. Qual foi o resultado dessa expedição? Conta-me, fala. Tudo quanto te diz respeito me interessa.
Poncio Pilatos abanou tristemente a cabeça.
  Um zelo natural – declarou ele – e a noção do dever levaram-me a desempenhar as funções públicas não apenas com diligência, mas também com amor. O ódio, porém, perseguiu-me sem tréguas. A intriga e a calunia estragaram-me a vida na melhor idade, secando os frutos que deveria produzir. Interrogas-me acerca da revolta dos Samaritanos. Senta-te aí nesse cômoro. Vou satisfazer-te a curiosidade em poucas palavras. Tenho os fatos tão presentes como se houvessem ocorrido ontem. Um plebeu muito eloquente, conforme e vulgar na Síria, convenceu os Samaritanos a reunirem-se armados no monte Gazim, que nesse país é considerado um lugar santo, e prometeu apresentar-lhes os vasos sagrados que certo herói epônimo, ou melhor, um deus tribal, chamado Moisés, aí havia escondido, nos remotos tempos de Evandro e Eneias, nosso pai. Perante esta promessa, os Samaritanos revoltaram-se. Mas eu, avisado a tempo, mandei ocupar a montanha por destacamentos de infantaria e coloquei perto alguns grupos de cavaleiros para vigiarem os arredores. Estas medidas de prudência eram urgentes. Os rebeldes cercavam já a povoação de Tirataba, situada no sopé do monte Gazim. Dispersei-os facilmente e abafei a revolta a nascença. Em seguida, a fim de castigar sem fazer muitas vítimas, mandei supliciar os chefes da sedição. Mas tu não ignoras, Lâmia, até que ponto me encontrava sujeito ao pro cônsul Vitélio que, governando a Síria, não a favor de Roma, mas sim contra Roma, entendia que as províncias do Império são como uma espécie de quintas que se dão aos tetrarcas. Os mais importantes de entre os Samaritanos vieram chorar-lhe aos pés o seu ódio contra mim. Quem os ouvisse havia de ficar a supor que nada estava mais longe dos seus propósitos do que desobedecer a Cesar. Eu era um provocador, e apenas se tinham reunido em volta de Tirataba para resistirem as minhas violências. Vitélio deu ouvidos a tais queixumes e, confiando o governo da Judeia ao seu amigo Marcelo, ordenou que me fosse justificar perante o imperador. Cheio de amargura ressentimento, fiz-me ao mar. Quando aportei as costas da Itália, Tibério, gasto pela idade e pelo cargo, morria subitamente no cabo Miseno cujo dorso se vê daqui a alongar-se por entre a bruma do crepúsculo. Pedi justiça a Caio, o seu sucessor, que era dotado de um espírito vivo e que conhecia os assuntos da Síria. Vi lá meu caro Lâmia, a que ponto a sorte se obstinava em perseguir-me. Caio conservava nessa altura junto de si, na Cidade, o judeu Agripa, seu companheiro e amigo de infância, a quem queria mais do que aos próprios olhos. Ora, Agripa protegia Vitélio porque este era inimigo de Antipas que ele perseguia com todo o seu ódio. O imperador apoiou a maneira de sentir do seu amigo asiático e recusou-se até a receber-me. Tive de suportar as consequências de uma imerecida desgraça. Engolindo as lágrimas, cheio de raiva, retirei-me para as minhas terras da Sicília, onde teria morrido de desgosto se acaso a minha meiga Poncia não me tivesse vindo consolar. Cultivei trigo e consegui produzir as melhores espigas de toda a província. A minha vida acabou. O futuro que se pronuncie entre mim e Vitélio."
– Poncio – respondeu Lâmia – estou convencido de que agiste para com os Samaritanos segundo a retidão do teu caráter e apenas no interesse de Roma. Mas não terias tu obedecido demasiado nessa altura a impetuosa coragem que sempre te arrebatou? Sabes bem que, na Judeia - embora o fato de ser mais novo do que tu me devesse espicaçar o ímpeto - muitas vezes te aconselhei brandura e clemência.
– Brandura para com os Judeus - exclamou Poncio Pilatos. - Embora tenhas vivido entre eles, conheces mal esses inimigos do gênero humano.
Orgulhosos e vis ao mesmo tempo, unindo uma ignominiosa cobardia a uma invencível obstinação, eles tanto aborrecem o amor como o ódio. O meu espírito, Lâmia, nutriu-se das máximas de Augusto. Quando fui nomeado procurador da Judeia, já a majestade da paz romana envolvia a terra. Nessa altura, deixara de se ver, como no tempo das nossas discórdias civis, os pro cônsules enriquecerem a custa das províncias. Eu sabia qual era o meu dever. Procurava a todo o custo agir com sensatez e moderação. Os deuses são testemunhas disso: Obstinei-me apenas na mansuetude. Mas de que me serviram estes benévolos desígnios? Viste-me, Lâmia, quando no início do meu governo estalou a primeira revolta. Será necessário recordar-te o que então se passou? A guarnição de Cesárea tinha ido ocupar os quartéis de inverno em Jerusalém. Os legionários ostentavam nas suas insígnias as imagens de Cesar. Isto ofendeu os Hierosolimitas que não conheciam a divindade do imperador, como se, uma vez que é preciso obedecer, não fosse mais honroso estar sujeito a um deus do que a um homem. Os padres da nação vieram, ao meu tribunal, pedir-me com altiva humildade que fizesse transportar as insígnias para fora da cidade santa. Recusei-me a fazer-lhes a vontade por causa do respeito que nos deve merecer a divindade de Cesar e a majestade do Império. Então, a plebe, unindo-se aos sacerdotes, cercou o pretório de ameaçadoras suplicas. Ordenei aos soldados que, depois de ensarilharem as lanças em frente da torre Antônia, fossem como simples lictores dispersar a chibatada aquela insolente multidão. Mas, insensíveis as pancadas, os Judeus increparam-se de novo, e os mais obstinados, deitando-se no chão, esticavam o pescoço e deixavam-se flagelar até a morte. Assististe a minha humilhação, Lâmia. Por ordem de Vitélio, tive de mandar as insígnias para Cesárea. Não merecia de fato tal vexame. Perante os deuses imortais te juro que, durante o meu governo, nunca infringi nem uma vez sequer a justiça ou as leis. Mas estou velho. Os meus inimigos e os meus delatores morreram. Portanto, desaparecerei também sem me vingar. Quem poderá defender-me a memória?
Depois de soltar um gemido calou-se. Lâmia respondeu:
– Tão insensato é confiarmos demasiado no volúvel futuro como desesperarmos dele. Que importa aquilo que os homens vierem a pensar dos atos que praticamos? Só nós próprios podemos ser as testemunhas e os juízes da nossa maneira de proceder. Confia apenas, Poncio Pilatos, naquilo que pensas da tua virtude pessoal. Contenta-te com a estima que tens por ti mesmo e com a dos teus amigos. Quanto ao resto, a brandura não chega para governar os povos. Essa caridade pelo género humano, que a filosofia aconselha, pouco interessa aos atos dos homens públicos.
– Deixemos isso – declarou Poncio. – Os vapores de enxofre que se exalam dos campos Flégreos são mais intensos quando saem da terra ainda aquecidos pelos raios do sol. Tenho de me despachar. Adeus. Uma vez, porém, que encontrei um amigo, quero aproveitar essa feliz circunstância. Aelio Lâmia, concede-me o favor de vires cear amanhã a minha casa, que fica junto da praia, no extremo da cidade, para os lados do cabo Miseno. Reconhecê-la-as facilmente pelo pórtico onde se vê pintado Orfeu no meio dos tigres e dos leões encantados com os sons da sua lira.

"Até amanhã, Lâmia - disse ainda, ao subir para a liteira. – Amanhã falaremos da Judeia."
No dia seguinte, Lâmia dirigiu-se, a hora da ceia, a casa de Poncio Pilatos. Só se viam dois leitos a espera dos convivas. Servida sem fausto mas decentemente, a mesa tinha em cima diversos pratos de prata nos quais estavam preparados figos com mel, tordos, ostras de Lucrino e lampreias da Sicília. Poncio e Lâmia, enquanto comiam, iam fazendo um ao outro diversas perguntas acerca das respectivas doenças, das quais descreviam pormenorizadamente os sintomas, e permutavam a indicação dos remédios que lhes haviam receitado. Depois, congratulando-se mutuamente pelo fato de se terem encontrado em Baies, gabaram muito a beleza dessa estância e a suavidade do seu clima. Lâmia elogiou a elegância das cortesãs que se passeavam na praia, carregadas de ouro e arrastando mantas bordadas pelos bárbaros. Mas o velho procurador deplorava essa ostentação que, em troca de pedrarias falsas e de teias de aranha fabricadas pelos homens, transferia o dinheiro romano para as mãos dos povos estrangeiros, alguns até inimigos do Império. Ocuparam-se então das importantes obras em curso na região, dessa prodigiosa ponte lançada por Caio entre Putéolos e Baies e dos canais abertos por Augusto, a fim de lançar as águas do mar nos lagos de Averno e Lucrino.
– Também eu – declarou Poncio suspirando – pretendi levar a cabo alguns grandiosos projetos de utilidade pública. Quando, infelizmente, me foi concedido o governo da Judeia, tracei o plano de um aqueduto com duzentos estádios de comprimento, que deveria abastecer Jerusalém de água abundante e pura. Os níveis, a capacidade dos módulos, a inclinação dos cálices de bronze aos quais se adaptavam os tubos de distribuição, tudo eu havia estudado, e de acordo com o parecer dos maquinistas, nada me faltava resolver. Estava a preparar um regulamento para o policiamento das águas, a fim de que nenhum particular pudesse ilicitamente apropriar-se delas. Os arquitetos e os operários encontravam-se contratados. Ordenei que principiassem os trabalhos. Mas, em vez de verem com satisfação começar a erguer-se esta via que, assente em tão poderosos arcos, deveria trazer, com a água, a saúde a cidade, os Hierosolimitas romperam num lamentável coro de berros. Juntando-se em tumulto, protestando contra o sacrilégio e a impiedade, agrediam os operários e dispersavam as pedras das fundações. Podes imaginar, Lâmia, uma raça de bárbaros mais imunda? No entanto, Vitélio deu-lhes razão e recebi ordem para interromper a obra.
– … um problema grave – declarou Lâmia – esse de se saber se é legítimo tornarem-se os homens felizes contra vontade.
Poncio Pilatos prosseguiu sem o ouvir:
– Recusar um aqueduto, que loucura! Mas tudo quanto vem dos Romanos é odioso para os Judeus. Consideram-nos uns seres impuros e a nossa simples presença constitui já uma profanação. Sabes muito bem que eles não se atreviam a entrar no pretório com medo de se conspurcarem e eu tinha de exercer a magistratura pública num tribunal armado ao ar livre, nesse terraço de mármore que tantas vezes pisavas. Eles receiam-nos e desprezam-nos ao mesmo tempo. E, no entanto, não é Roma a mãe é a tutora de todos os povos que, como crianças descansam e sorriem sobre o seu venerável seio? As nossas ·guias levaram a paz e a liberdade até aos limites do universo. Considerando os vencidos como amigos, concedemos, garantimos mesmo a cada povo conquistado o uso dos seus costumes e das suas leis. Não foi somente depois de Pompeu haver submetido a Síria, outrora dilacerada por tantos reis, que esta começou a desfrutar horas de repouso e prosperidade? E, embora Roma esteja em condições de vender a troco de ouro os seus favores, roubou ela alguma vez as riquezas que enchem os templos bárbaros? Despojou porventura a deusa Máe em Pessinonte, Júpiter na Morimíne e na Cilícia, a divindade dos Judeus em Jerusalém? Antioquia, Palmira, Apaméia, tranquilas apesar dos seus tesouros, e sem recearem já os árabes do deserto, erguem templos ao gênio de Roma e a divindade de Cesar. Apenas os Judeus nos odeiam e nos desafiam. Temos de lhes arrancar a força o tributo, e recusam-se obstinadamente a prestar o serviço militar.
– Os Judeus – retorquiu Lâmia – são muito agarrados aos seus antigos usos. Suspeitavam, sem razão, concordo, de que pretendias abolir a sua fé e modificares os seus costumes. Desculpa que te diga, Poncio, mas nem sempre agiste de forma a dissipar-lhes os receios. Embora sem dares por isso, tinhas prazer em espicaçar as suas inquietações, e vi-te mais de uma vez deixar transparecer diante deles o desprezo que te inspiravam as suas crenças e as suas cerimonias religiosas. Vexava-los sobretudo com a atitude de mandares guardar pelos legionários, na torre Antônia, os trajes e os ornamentos do sumo-sacerdote. … preciso reconhecer que, embora não se tenham elevado como nós a contemplação das coisas divinas, os Judeus celebram mistérios veneráveis pela sua antiguidade.
Poncio Pilatos encolheu os ombros e declarou:
  Eles não possuem uma noção exata da natureza dos deuses. Adoram Júpiter, mas sem lhe darem nome ou figura. Nem sequer o veneram sob a forma de uma simples pedra, como alguns povos da Ásia. Nada sabem acerca de Apolo, de Netuno, de Marte, de Plutão, nem de nenhuma deusa. No entanto, creio que outrora adoraram Vênus. Ainda hoje as mulheres levam pombas aos altares para servirem de vítimas, e sabes t„o bem como eu que os comerciantes, sob os pórticos do templo, vendem aves dessas aos pares para o sacrifício. Disseram-me até que, um dia, certo louco furioso tinha derrubado esses vendilhões de oferendas com as suas gaiolas. Os padres lamentavam-se disso como se fosse um sacrilégio. Creio que este uso de sacrificar pombas foi estabelecido em honra de Vênus. Porque estás tu a rir, Lâmia?
  Ria-me – explicou o interpelado – de uma coisa engraçada de que acabo de me lembrar. Pensei que um dia o Júpiter dos Judeus poderia vir vingar-se de ti a Roma. Porque não? Tanto a Ásia como a África já nos forneceram um grande número de deuses. Vimos erguerem-se em Roma templos em honra de Isis e do uivante Anúbis. Encontramos as vezes nos becos e até nas estradas a Boa Deusa dos Sírios as costas de um burro. E não sabes tu que, durante o principado de Tibério, certo jovem cavaleiro se fez passar pelo Júpiter cornudo dos Egípcios e alcançou, graças a este disfarce, os favores de uma dama ilustre, em demasia virtuosa para recusar fosse o que fosse aos deuses. Deves recear, Poncio, que o Júpiter invisível dos Judeus desembarque algum dia em Óstia!
Frente a ideia de que fosse possível vir para Itália um deus da Judeia, um sorriso furtivo passou pelo rosto severo do procurador. Depois respondeu gravemente:
– Como poderiam os Judeus impor uma lei santa aos povos estranhos quando eles próprios discordam acerca da interpretação dessa mesma lei? Divididos em vinte seitas rivais - assististe a isso, Lâmia - injuriam-se uns aos outros, puxando as barbas. Viste-os, sobre o estilibata do templo, a rasgarem, como sinal de desgosto, as suas nojentas vestes em torno de qualquer miserável possesso de delírio profético. Eles não admitem que se possa discutir em paz, com serenidade, acerca das coisas divinas que, no entanto, se encontram tão veladas e cheias de incerteza. A natureza dos imortais permanece oculta aos nossos olhos e não nos é possível desvenda-la. Continuo, no entanto, a pensar que convém acreditar na Providência dos deuses. Mas os Judeus não têm nenhuma filosofia e não admitem a diversidade de opiniões. Pelo contrário, julgam dignos do suplício todos aqueles que professam a respeito da divindade sentimentos  opostos a sua fé. E como, apos o gênio de Roma os ter submetido, todas as sentenças a pena capital pronunciadas pelos tribunais só podem ter execução depois de sancionadas pelo pro-cônsul ou pelo procurador, eles fazem pressão sobre o magistrado romano para que confirme as suas funestas decisões; cercam o pretório com os seus gritos de morte. Vi-os mais de cem vezes, ricos e pobres, agrupados em grande número, todos reconciliados, a volta da minha cadeira de marfim, a puxarem-me pela toga, pelas correias das sandálias, a reclamarem, a exigirem a morte de um infeliz qualquer cujo crime eu não podia compreender e que considerava tão louco como os seus acusadores. Que digo eu, cem vezes! Isso sucedia todos os dias, a todas as horas. E, no entanto, a minha obrigação era fazer executar a sua lei da mesma forma que a nossa, uma vez que Roma me nomeara para ser, não o destruidor, mas sim o sustentáculo dos seus costumes, e que eu representava para eles o chicote e o machado. Nos primeiros tempos, procurei chama-los a razão; tentei salvar do suplício as suas miseráveis vítimas. Mas esta mansuetude ainda os irritava mais; reclamavam a presa batendo em torno de mim com as asas e os bicos, como se fossem abutres. Os sacerdotes escreviam a Cesar acusando-me de violar as suas leis; e tais suplicas apoiadas por Vitélio, faziam-me incorrer nas mais severas censuras. Quantas vezes me deu vontade de, conforme dizem os Gregos, os mandar todos aos corvos, tanto acusados, como juízes! Mas n„o fiques a supor, Lâmia, que alimento ódios recalcados e raivas senis contra esse povo que, vencendo-me a mim, venceu Roma e a paz. Sendo impossível governa-los, impõe-se destrui-los. Não duvides disso: sempre rebeldes, chocando a revolta nas suas almas ardentes, farão estalar contra nós mais dia menos dia um furor tal, que, comparadas com ele, a cólera dos Nômidas e as ameaças dos Partas não passarão de simples caprichos de crianças. Nutrem na sombra esperanças insensatas e obceca-os a ideia de nos arruinarem. E poderiam passar-se as coisas de outra forma, uma vez que aguardam, confiantes na previsão de certo oraculo, a vinda de um príncipe do seu sangue que está destinado a reinar sobre o mundo? Nunca conseguiremos dominar esse povo. Temos de acabar com ele. É preciso destruir Jerusalém de alto a baixo. Apesar de ser velho, talvez me seja concedida a ventura de ver o dia em que as suas muralhas caiam, em que as chamas devorem as suas casas, em que os seus habitantes morram passados a fio de espada, em que se espalhará sal no sítio onde se ergueu o seu templo. Nesse dia, ficarei justificado."
Lâmia tentou encaminhar a conversa para um tom mais ameno.
– Poncio – disse ele – compreendo bem os teus antigos ressentimentos e as tuas sinistras previsões. Não ha dúvida de que a experiência que possuis acerca do caráter dos Judeus não lhes é favorável. Mas eu, que vivia em Jerusalém como simples curioso e me misturava com o povo, consegui descobrir nesses homens certas virtudes ocultas, que não podias ver. Conheci alguns judeus muito amáveis, e tanto os seus costumes como a sua lealdade me faziam recordar aquilo que os nossos poetas diziam do velho legislador espartano. E tu próprio, Poncio, viste morrer sob os golpes de bastão dos teus legionários muitos homens inocentes que, sem dizerem sequer como se chamavam, pereciam por uma causa que supunham justa. Esses não merecem o nosso desprezo. Digo isto porque é conveniente não perdermos nunca de vista, seja a respeito do que for, o equilíbrio e o espírito de justiça. Mas confesso que nunca tive grande simpatia pelos Judeus. As judias, pelo contrário, agradavam-me muito. Eu, nesse tempo, era novo, e as sírias provocavam-me uma estranha perturbação nos sentidos. Os seus lábios vermelhos, as suas pupilas húmidas que brilhavam na sombra, os seus prolongados olhares penetravam-me até a medula. Pintadas e ungidas, cheiravam a nardo e a mirra, e a sua carne macerada de aromas tinha um estranho e delicioso sabor.
Poncio escutava estes louvores com impaciência.
– Eu não era homem que me deixasse apanhar na rede das judias – declarou ele - e, já que me obrigas a isso, Lâmia, confesso-te que nunca aproveitei a tua incontinência. E se não censurei mais outrora o fato de haveres seduzido, em Roma, a mulher de um cônsul, foi atendendo a que então expiavas duramente o teu crime. O matrimônio, entre os patrícios, é sagrado; trata-se de uma das instituições em que Roma assenta. Quanto as mulheres escravas ou estrangeiras, pouca importância teriam as nossas relações com elas, se não fosse o caso de o corpo se habituar a uma vergonhosa moleza. Desculpa dizer-te que sacrificaste demasiado a Vênus das encruzilhadas; mas aquilo que mais te censuro, Lâmia, é o não te teres casado segundo a lei e não haveres dado filhos a Rep˙blica, conforme devem fazer todos os bons cidadãos.
Mas o exilado de Tibério já não escutava o velho magistrado. Depois de esvaziar a sua taça de Falerno, ficara a sorrir para qualquer imagem invisível.
Após um instante de silêncio, prosseguiu baixinho, erguendo pouco a pouco o tom:

- Dançam com tal languidez as mulheres da Síria! Conheci uma judia de Jerusalém que, em certa alfurja, a luz de uma pequena lamparina fumarenta, em cima de um tapete velho, bailava erguendo os braços para fazer ressoar os címbalos. Com os rins arqueados e a cabeça deitada para trás, como se fosse arrastada pelo peso dos seus compridos cabelos ruivos, mostrando os olhos húmidos de volúpia, ardente e languida, flexível, teria feito empalidecer de inveja a própria Cleópatra. Eu gostava das suas danças bárbaras, da sua maneira de cantar um pouco rouca e no entanto tão suave, do seu cheiro a incenso, do torpor em que parecia viver. Seguia-a para toda a parte. Misturava-me ao mundo vil dos soldados, dos histriões e dos publicanos de que estava sempre rodeada. Ela desapareceu um dia, e não voltei a vê-la. Procurei-a durante muito tempo pelas ruas suspeitas e nas tabernas. Era mais difícil desabituarmo-nos dela do que do vinho grego. Depois de a ter perdido há muitos meses, vim a saber por acaso que se reunira a um pequeno grupo de homens e de mulheres que seguiam um jovem taumaturgo galileu chamado Jesus, natural de Nazaré, e que foi crucificado por um crime qualquer. Poncio, lembras-te desse homem?
Poncio Pilatos franziu os sobrolhos e levou a mão a testa, como quem procura recordar-se. Depois de alguns momentos de silêncio, murmurou:

– Jesus! Jesus de Nazaré? Não me recordo.

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