Raduan Nassar, escritor paulista nascido na cidade de Pindorama em 1935, considerado
um dos maiores escritores brasileiros do século XX, autor de dois romances Lavoura
Arcaica e um copo de cólera, considerados dois dos maiores clássicos da literatura brasileira.
Menina a caminho é seu primeiro conto publicado em 1960.
Menina a caminho
Raduan
Nassar
Vindo de casa, a menina caminha sem
pressa, andando descalça no meio da rua, às vezes se desviando ágil pra
espantar as galinhas que bicam a grama crescida entre as pedras da sarjeta. O
vestido caseiro, costurado provavelmente com dois retalhos, cobre seu corpo
magro feito um tubo; a saia é de um pano grosso e desbotado, a blusa do
vestido é de algodão acetinado, um fundo preto e brilhante, berrando em cima
uma estampa enorme em cores vivas, tão grande que sobre o peito liso da menina
não aparece mais que o pedaço de uma folha tropical. Deve dormir e acordar, dia
após dia, com as mesmas tranças, uns restos amarrotados. Uma delas, toda
esfiapada, é presa por dois grampos se engolindo; já quase desfeita, as mechas
da outra estão mal apanhadas no alto por um laço encardido que cai feito flor
murcha sobre a testa. Lambendo, enquanto anda, os fios colados à roda amarela
e gosmenta de manga ao redor da boca, a menina esquece um momento outras distrações da rua ao se aproximar da pequena agitação
diante da maquina de beneficiar arroz: três meninos estão saindo pela porta
grande do armazém, puxando cada um deles um saco de palha.
“O Quinzinho só levou dois sacos até
agora” resmunga um dos meninos.
“Mas ele vai emprestar a farda de quando
era escoteiro mascote” diz um segundo.
“E daí? A Lena-minha-irmã vai emprestar
duas fantasias, de baiana e havaiana, e eu já levei seis sacos, são sete com
este ...”
A menina se encanta acompanhando assim
clandestinamente aquela disputa, sente um entusiasmo gostoso escondido atrás da
discussão.
“Eu acho bom você parar de reclamar”
recomenda o terceiro menino.
Descalços, sem camisa, os corpos arcados,
os meninos arrastam os sacos, que puxam por um dos cantos como se os puxassem
pela orelha. E a palha, com o movimento às vezes emperrado, vai estufando cada
vez mais a barriga gorda do fundo dos sacos. Passando pro chão de terra, um dos
meninos vê a menina acocorada, observando-os por sob a barriga abaulada de um
cavalo, cujas rédeas estão amarradas numa das argolas chumbadas na guia. Os
três meninos param.
“O cirquinho é hoje, na casa do Dinho”
grita um deles se agachando pra encontrar os olhos da menina por baixo da barriga
do cavalo.
A menina vislumbra um fundo escuro de
quintal, um grande círculo fofo de palha de arroz, velas acesas na ponta de
estacas, os casacas de ferro, os meninos trapezistas, e seus olhos piscam de
fantasias.
“São dez palitos a entrada” diz o Dinho se
agachando também.
O Zuza, rapazote que marcha na calçada do
outro lado, uma bola de capotão no arco do braço, diminui o passo e vem pro
meio da rua:
“Na casa de quem, o cirquinho?” vai
perguntando.
“Lá em casa” diz o Dinho.
“E quem trabalha nesse cirquinho?”
“A gente, mais o Quinzinho, a Tuta co’ a
Iracema que vão cantar ‘Um carro de boi’, a Eunice ... “
“A Nice não vai” intervém um dos meninos.
“A mãe dela diz que da outra vez teve aquilo ...”
“Aquilo o quê?” pergunta o Zuza, malandramente.
“Você sabe, ara!”
O Zuza estufa o peito, cheio de si,
enquanto o menino adverte com medo:
“A mãe do Dinho disse que quem tem mais de
doze anos não entra dessa vez, só o Quinzinho que o Quinzinho vai emprestar a
...”
“Fecha esse bico, gordinho.”
O menino se tranca e enfia os olhos no chão.
O Zuza faz ainda um trejeito com a boca:
“Cirquinho mixo esse ... e o Quinzinho que não se meta a besta comigo” diz
despeitado, e, largando de repente a bola de capotão, mata com destreza a pelota, pisando em cima com o pé direito. Os braços
livres, arma num instante o gesto: “Aqui que
eu não entro nesse cirquinho” diz movimentando lentamente o braço teso da
banana, pra cima e pra baixo, os olhos cheios de safadeza:
“Aqui que eu não entro, aqui, Ó.”
A menina arregala uns olhos deste tamanho
e acompanha apreensiva a ameaça do rapazote. Os três meninos nem se mexem e, ao pé deles, um depois do outro, estão caídos os três
sacos, vomitando palha pela boca aberta, como se tivessem levado um murro
violento na barriga.
“Zuza! Ó Zuza!”
O Zuza interrompe rápido a banana, apanha
dissimulado a bola e olha. “Zuza, vem cá um pouquinho.”
Debruçada sobre uma almofada de cetim
azul, no parapeito de uma janela alta, dona Ismênia, robusta, cheia de pintura, desfrutando a primeira sombra que já
tomba da sua casa, acena a mão chamando o Zuza. O rapazote abandona o meio da
rua enquanto os três meninos, sem mais
demora, apanham os sacos pela orelha e se safam
apressadamente dali, deixando no chão três rodelas de palha amarela, como se fossem três gemas enormes se cozendo ao sol. O
Zuza sobe a calçada meio sem jeito e ergue os olhos pra janela.
“Mas Zuza,
não faz nem uma semana que você começou a trabalhar e você já está nessa
folga?” diz a dona Ismênia brincando
com os olhos, o rosto colorido que nem bunda de mandril.
O Zuza continua olhando pro alto, a bola
de capotão no arco do braço.
“Será que você está mesmo de folga, hem
Zuza?”
“Tou” responde encabulado.
“É verdade que o seu América fechou o armazém?”
“É verdade, sim.”
“E vocêe
sabe por quê?”.
“O seu Américo mandou fechar as portas e
eu fechei, não faz meia hora.”
“Como assim?”
“Disse que era por causa do calor e que eu
podia ir embora.”
“O quê?!”
Outra mulher, que mal se esconde atrás da cortina repuxada pr’um dos lados, belisca com certeza
a coxa grossa da dona Ismênia que protesta c’um grito esganiçado, voltando logo
o rosto e alongando mais o riso. Debruçando se de novo na almofada, os seios leitosos,
explosivos, quase espirrando pela Canoa do decote, encabulam inda mais o rapazote.
“Me diz uma coisa, Zuza: que história é
essa que andam falando do filho do seu Américo?...”
O vulto atrás da cortina já não sustenta o
recato, se arrebenta, sem mostrar a cara, numa solta gargalhada, enquanto a
dona Ismênia, afogando-se de gozo, se sacode tanto na janela, parece até que
vai vomitar algum sabugo. O Zuza ri também, sem saber por que, as faces
formigando, mas a algazarra incompreensível das duas mulheres pouco a pouco se
abranda.
“Posso te fazer outra pergunta, Zuza?”
“Claro.”
“Me diz só mais uma coisa: quem te ensinou
a dar banana daquele jeito?” pergunta a dona Ismênia carregando na malícia, se
engasgando ao mesmo tempo com o novo acesso de riso. “Chega, Mênia! Tadinho
.... “ diz a voz atrás da cortina.
“A banana que você dá é muito bem dada,
Zuza ...” acrescenta a dona Ismênia logo depois, alimentando fartamente a
fogueira de riso. Sacudindo se de novo na janela, fazendo tremer os seios de
gelatina, ela até lacrimeja de tanto rir, gritando no fim do gozo com o beliscão
que mais uma vez lhe aplicam na coxa. Termina extenuada: “Uff!...” “Ai, Mênia,
que vergonha!...” diz a voz atrás da cortina.
O Zuza está ardendo de vermelhidão, as
orelhas num fogaréu.
“É só, Zuza” encerra a dona Ismênia entre
suspiros.
O Zuza continua olhando pra cima.
“É só” diz ela se desvencilhando,
desviando o olhar pra bem longe e cantarolando baixinho: “larará, larará,
lariri...”. Volta-se de novo pro rapazote:
“Sua mãe está boa, Zuza?”
“Tá boa, sim.”
“Dê lembranças pra ela.”
O Zuza não se mexe.
“Dê lembranças” repete a dona Ismênia
vendo que o Zuza não arreda pé. Atrás da cortina, um risinho, meio miado,
aparece e desaparece.
“Até logo, dona Ismênia” diz enfim o
rapazote.
“Até logo, Zuza, e dê lembranças pra sua
mãe, viu?”
O Zuza se aparta dali, andando cada vez
mais rápido, atendendo quem sabe à curiosidade que cresce com os passos,
enquanto na janela da dona Ismênia o riso ressurge com ardor revigorado.
Acocorada ainda ao lado do cavalo, a
menina desvia os olhos da janela e alcança, bem
afastados, os três meninos arrastando os sacos de palha pelo chão de terra,
como se fossem três pequenos arados, um ao lado do outro, que tivessem deixado
à sua passagem uma seara estreita ao longo da rua.
Só quando o cavalo distancia as patas traseiras
é que a menina repara, escondido no alto entre as pernas, e se mostrando cada
vez mais volumoso, no seu sexo de piche. Ela desmancha rápido a
postura, se joga pra trás, os bracinhos esticados, as palmas das mãos se plantando na terra. Recebe mesmo assim os respingos do esguicho
forte, o jato de mijo abrindo uma biroca no chão. O susto nos olhos dela aumenta com a gargalhada
dos carregadores, dois crioulos musculosos e um branco atarracado, que fazem a
sesta na calçada, estirados à sombra de uma árvore.
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