sexta-feira, 5 de junho de 2015

50 – Onnagata – Y. Mishima

Yukio Mishima escritor japonês (1925-1970), levou a extremos o amor por seu país, criando para si próprio um personagem de difícil compreensão, que saiu bombasticamente de cena com um seppuku (haraquiri) o ritualístico suicídio japonês, depois de uma teatral tentativa de golpe de estado para restaurar em 1970 os poderes do imperador. Da sua paixão pela cultura japonesa e pelo teatro, nasce "Onnagata", um conto tão elegante, sutil e misterioso quanto o ator de Kabuki que ele descreve.

Onnagata
Yukio Mishima
Tradução de Aulide. S. Rodrigues

Masuyama ficara completamente encantado com a arte de Mangiku; assim, depois de se formar em literatura clássica japonesa, resolveu empregar-se no teatro Kabuki. O desempenho de Mangiku Sanokawa o deixara extasiado.
O gosto de Masuyama pelo Kabuki começou a se manifestar quando estava no ginásio. Nessa época Mangiku, então principiante como onnagata, fazia papeis sem importância, como o da borboleta fantasma em Kagami Jishi ou, na melhor das hipóteses, a empregada Chidori, no Repudio de Genta. A interpretação de Mangiku era ortodoxa e sem personalidade; ninguém imaginava que pudesse chegar a sua atual eminência. Porém, já naquele tempo, Masuyama percebia as chamas geladas que emanavam da beleza altiva do ator. O publico em geral, naturalmente, não notava coisa alguma. Além disso, nenhum critico de teatro jamais chamara a atenção para aquela estranha qualidade de Mangiku, aquelas centelhas de chamas, visíveis através da neve, que iluminavam seus desempenhos desde o começo de sua carreira. Agora todos falavam como se Mangiku fosse uma descoberta pessoal.
Mangiku Sanokawa era um verdadeiro onnagata, espécie raramente encontrada nos nossos dias. Ao contrario da maioria dos onnagatas contemporâneos, era incapaz de inter­pretar bem papeis masculinos. Sua presença em cena era brilhante, mas com sugestões de sombras, cada gesto seu a essência da delicadeza. Mangiku jamais expressava coisa alguma — força, autoridade, resistência ou coragem — a não ser por meio do único agente disponível a sua arte, a expressão feminina; mas através desse agente conseguia filtrar todo o tipo de emoção humana. Essa é a característica do verdadeiro onnagata, mas nos nossos dias eles são muito raros. Seu colorido musical, produzido por um instrumento espe­cial e muito refinado, não pode ser conseguido com um ins­trumento normal em tom menor, nem reproduzido por uma imitação servil de mulheres de verdade.
Yukihime, a Princesa da Neve, em Kinkakuji era um dos papeis mais perfeitos de Mangiku. Masuyama lembrava-se de ter visto Mangiku no papel de Yukihime dez vezes em um mês, e por mais que repetisse a experiência, seu entusiasmo não diminuía. Tudo o que simbolizava Sanokawa Mangiku podia ser encontrado nessa peça, os elementos entrelaçados, desde as primeiras palavras do narrador: “O Pavilhão Dourado, nas montanhas, refugio do Senhor Yoshimitsu, Primeiro-ministro e Monge do Parque dos Gamos, tem três andares e seu jardim e adornado com belas paisagens: a pedra guardiã da noite, a água escorrendo sob as rochas, a cascata repleta de primavera, os salgueiros e as cerejeiras plantados lado a lado; a capital de lá é um vasto brocado multicolorido.” O brilho ofuscante do cenário, mostrando cerejeiras em flor, uma cachoeira e o cintilante Pavilhão Dourado; os tambores, sugerindo o som surdo da agua caindo e contribuindo para uma constante agitação no palco; o rosto pálido e sádico do lascivo Daizen Matsunaga, o gene­ral rebelde; o milagre da espada magica, que cintila ao sol da manhã com a imagem sagrada de Fudo, mas que mostra a imagem de um dragão quando apontada para o sol poente; o fulgor do pôr-do-sol na cachoeira e nas cerejeiras; as flores das cerejeiras espalhando suas pétalas uma a uma — tudo na peça existe em função de uma mulher, a bela e aristocrática Yukihime. Não há nada de diferente na roupa de Yuki­hime, o vestido de seda vermelha usado por todas as jovens princesas. Mas a presença espiritual da neve, concordando com seu nome, paira sobre essa neta do grande pintor Sesshu, e as paisagens de Sesshu, impregnadas de neve, podem ser sentidas na vastidão do cenário. Essa neve fantasma empresta ao vestido de Yukihime seu brilho ofuscante.
Masuyama gostava especialmente da cena em que a princesa, amarrada com cordas na cerejeira, lembra-se da lenda do seu avô, e com os dedos do pé desenha um rato nas flores caídas, que, adquirindo vida, rói as cordas que a prendem. Não é preciso dizer que Mangiku Sanokawa não se valia dos movimentos mecânicos usados por alguns onnagatas, nessa cena. As cordas que prendiam Mangiku a arvore o faziam parecer mais belo do que nunca: todos os arabescos artificiais desse onnagata — a delicada linguagem do corpo, o jogo dos dedos, a curva da mão — por mais que possam pa­recer forçados para os movimentos da vida diária — adquiriam uma estranha vitalidade quando usados por Yukihime atada à árvore. As atitudes contorcidas e complexas impostas pelas cordas faziam de cada momento uma crise refinada e essas crises pareciam fluir, uma para dentro da outra, com a energia irresistível de ondas sucessivas.
Os desempenhos de Mangiku sem duvida tinham momentos de diabólico poder. Ele usava os belos olhos com tanta arte que em um segundo podia criar em toda a audiência a ilusão de que a característica de uma cena fora completamente alterada: quando seu olhar envolvia o palco, vindo do hanamichi, [1] ou o banamichi, vindo do palco, ou quando voltava-se rápido para cima, para o sino, em Dojoji. Na cena do palácio, em Imoseyama, Mangiku fazia o papel de Omiwa, cujo amante fora roubado pela Princesa Tachibana e que por isso sofrera a zombaria cruel das damas da corte. No fim, Omiwa corre para o hanamichi, quase ensandecida de ciúmes e de raiva; nesse momento escuta as vozes das damas da corte no fundo do palco, dizendo: “Um noivo sem igual foi encontrado para a nossa princesa. Que alegria para todas nos!” O narrador, sentado ao lado do palco, declama com voz forte: “Omiwa, ouvindo isso, imediatamente olha para trás.” Nesse momento Omiwa se transforma completamente e seu rosto revela os sinais de uma devoção possessiva.
Masuyama sentia uma espécie de terror cada vez que testemunhava esse momento. Por um instante, uma sombra diabólica encobria o palco brilhante com seu cenário maravilhoso e belos vestuários, bem como os milhares de espectadores atentos. Essa força emanava visivelmente do corpo de Mangiku, mas ao mesmo tempo transcendia sua carne. Nessas cenas, Masuyama tinha a impressão de que uma fonte escura jorrava daquela figura no palco, aquela figura tão repleta de maciez, fragilidade, graça, delicadeza e encantos femininos. Era algo que não podia identificar, mas sentia que a verdadeira essência daquela fonte escura era uma presença maléfica e estranha, o resíduo final da fascinação do ator, um demônio sedutor que desviava os homens dos seus caminhos, afogando-os em um momento de beleza. Porém, não se explica uma coisa simplesmente dando-lhe um nome.
Omiwa balança a cabeça e seus cabelos se soltam em desordem. No palco, para o qual volta agora, deixando o hanamichi, a lâmina de Funashichi a espera.
“A casa esta repleta de musica com um tom de tristeza outonal”, declama o narrador.
Há algo de terrível na pressa com que os passos de Omiwa a conduzem para a morte. Os pés descalços muito brancos, correndo para o desastre e para o fim, desarrumando apressados as pregas do quimono, parecem saber exatamente quando e onde, no palco, atingirão o objetivo para onde os conduzem as violentas emoções; apressam-se, jubilosos e triunfantes, mesmo entre as torturas do ciúme. A dor que ela demonstra é desenhada em um fundo de alegria, como seu quimono, externamente escuro, raiado de fios de ouro, e na parte interna iluminado com fios de prata de varias cores.
2
A decisão original de Masuyama de se empregar no teatro fora inspirada por seu entusiasmo pelo Kabuki , e especialmente por Mangiku; além disso, sabia que jamais se libertaria daquela servidão se não procurasse se familiarizar com o mundo dos bastidores. Já haviam lhe falado sobre o desencanto dos bastidores, e queria mergulhar naquele mundo e experimentar pessoalmente a desilusão genuína.
Porém, o desencanto que esperava jamais chegou. O próprio Mangiku o tornava impossível. Mangiku seguia fielmente as regras do manual do onnagata do século dezoito, Ayamegusa. “Um onnagata, mesmo no camarim, deve conservar as atitudes de um onnagata. Quando faz suas refeições, deve ter o cuidado de ficar de costas, para que não possam vê-lo.” Sempre que Mangiku, sem tempo para deixar o camarim, era obrigado a comer na presença de visitantes, virava-se para sua mesa e, desculpando-se, comia rapidamente, com tanta discrição que nem se percebia, por trás, que estava comendo.
Sem duvida, a beleza feminina representada por Mangiku no palco havia cativado Masuyama, como homem. Entretanto, por mais estranho que pareça, o encanto não se desfez, nem depois de ter observado atentamente Mangiku no camarim. O corpo de Mangiku, quando tirava o quimono da peça, era delicado, mas completamente masculino. Na verdade, Masuyama ficava um tanto confuso quando Mangiku, sentado na frente da penteadeira, sua quase nudez demonstrando claramente que era um homem, cumprimentava os visitantes com gestos e palavras delicadas e femininas, enquanto passava uma espessa camada de pós nos ombros. Se o próprio Masuyama, há tanto tempo admirador de Kabuki, havia experimentado estranhas sensações nas suas primeiras visitas ao camarim, qual seria a reação das pessoas que não gostam do Kabuki, porque o onnagata as constrange, ao ver aquela cena?
Entretanto, o que Masuyama sentiu ao ver Mangiku depois do espetáculo, despido, a não ser pelas roupas de baixo de gaze, que usava para absorver a transpiração, não foi desencanto e sim alivio. A imagem, por si mesma, poderia parecer grotesca, mas a natureza do fascínio sentido por Masuyama — sua qualidade intrínseca, podemos dizer — não se fundava em uma ilusão superficial, portanto aquela revelação não podia destrui-lo. Mesmo depois de Mangiku tirar a roupa, era evidente que continuava vestido com varias camadas de roupas esplêndidas sob a pele. Sua nudez era uma manifestação passageira. Algo que era responsável por sua aparência refinada no palco estava sem duvida guardado dentro dele.
Masuyama gostava de ver Mangiku quando ele voltava para o camarim, depois de desempenhar um papel importante. O fulgor das emoções do papel que acabava de representar pairava ainda sobre todo o seu corpo, como o brilho do sol poente ou da luz no céu da madrugada. As grandes emoções da tragédia clássica — emoções não relacionadas com nossa vida mundana — podiam parecer orientadas, pelo menos nominalmente, por faros históricos — o mundo das disputas por sucessões, campanhas pela pacificação, guerras civis, e assim por diante — mas na verdade não pertenciam a nenhum período. São as emoções próprias de um mundo estilizado, grotescamente trágico, sobejamente colorido, como numa xilogravura recente. Dor que ultrapassa os limites do homem, paixões sobre-humanas, amor ardente, alegria aterradora, os brados breves de pessoas apanhadas em circunstâncias trágicas demais para serem suportadas por seres humanos; essas eram as emoções que momentos antes haviam se alojado no corpo de Mangiku. Era espantoso que sua estrutura esbelta as pudesse conter sem que destroçassem aquele receptáculo tão delicado.
De qualquer modo, momentos atrás Mangiku vivera todos aqueles sentimentos grandiosos e irradiara luminosidade no palco justamente porque as emoções que transmitia transcendiam todas as que podiam ter sido experimentadas pela audiência. Talvez isso se aplique a todos os personagens do teatro, mas entre os atores dos nossos dias nenhum parecia estar vivendo honestamente emoções teatrais tão distanciadas da vida quotidiana.
Segundo uma passagem do Ayamegusa, “O encanto e a essência do onnagata. Porem, mesmo o onnagata bonito por natureza perderá o encanto se procurar impressionar com seus movimentos. Se tentar conscientemente ser gracioso, parecera completamente corrupto. Por esse motivo, a não ser que o onnagata viva como mulher quotidianamente, jamais será considerado um onnagata perfeito. Quando no palco, quanto mais se encontrar em um ou outro gesto essencialmente feminino, mais masculino vai parecer. Estou convencido de que o mais importante e o comportamento do ator em sua vida real.”
O comportamento do ator em sua vida real... sim, Mangiku era completamente feminino, tanto no modo de talar quando nos movimentos, em sua vida real. Se Mangiku fosse mais masculino na vida quotidiana, aqueles momentos em que o ardor do papel de onnagata, que acabava de desempenhar, gradualmente se dissolviam como a marca da maré alta na praia, na feminilidade da sua vida diária — que era a extensão da mesma fantasia — aqueles momentos funcionariam como uma divisão completa entre terra e mar, uma porta sombria fechando-se entre o sonho e a realidade. O faz-de- conta de sua vida real concordava com o faz-de-conta do seu desempenho no palco. Masuyama estava convencido de que essa era a marca do verdadeiro onnagata. Um onnagata é o filho nascido da união ilegítima do sonho com a realidade.
3
Quando os famosos atores da geração anterior foram morrendo, um depois do outro, a autoridade de Mangiku nos bastidores tornou-se absoluta. Seus discípulos onnagatas o serviam como empregados particulares; na verdade a hierarquia que observavam, quando acompanhavam Mangiku no palco, como criadas servindo sua princesa ou sua grande dama, era exatamente a mesma observada no camarim.
Quem abrisse as cortinas da porta, com o brasão da família Sanokawa, e entrasse no camarim de Mangiku, certamente teria uma estranha sensação: aquele santuário encantador não abrigava um único homem. Até mesmo as figuras do mesmo elenco sentiam, ali dentro, que estavam na presença do sexo oposto. Sempre que Masuyama ia ao camarim de Mangiku, a serviço, bastava abrir as cortinas da porta para sentir — antes mesmo de entrar — uma sensação estranhamente vivida e carnal de sua própria masculinidade.
Masuyama fora algumas vezes, a serviço da companhia, aos camarins das coristas de revistas. Eram ambientes repletos de uma feminilidade quase sufocante e as moças de pele áspera, esparramadas como animais no zoológico, lançavam olhares entediados para ele, mas nunca se sentiu tão estranhamente deslocado quanto no camarim de Mangiku; nada naquelas mulheres de verdade o fazia sentir-se especialmente masculino.
Os membros do grupo de Mangiku não demonstravam amizade especial para com Masuyama. Ao contrario, ele sabia que falavam dele as escondidas, acusando-o de desrespeito e de ser arrogante, só por ter frequentado a universidade. Sabia também que as vezes se irritavam com sua insistência pedante sobre fatos históricos. No mundo do Kabuki não se da nenhum valor à cultura acadêmica sem talento artístico.
O trabalho de Masuyama tinha certas compensações. As vezes, quando Mangiku pedia um favor a alguém — naturalmente só quando estava de bom humor — girava o corpo diagonalmente na frente da penteadeira, acenando de leve com a cabeça e sorrindo; o encanto indescritível dos seus olhos nesses momentos fazia com que Masuyama nada mais desejasse do que servi-lo como escravo. Mangiku, por sua vez, jamais esquecia sua dignidade: mantinha sempre uma certa distancia, embora obviamente reconhecesse o próprio encanto. Se fosse uma mulher real, todo o seu corpo estaria repleto com a fascinação dos olhos. A fascinação de um onnagata resume-se em uma centelha momentânea, mas o bastante para que tenha existência própria e as características do eterno feminino.
Mangiku estava sentado em frente ao espelho depois de sua atuação no Castelo do Senhor Protetor de Hachijin, o primeiro número do programa. Tirara o quimono e a peruca do papel da Senhora Hinaginu e vestia um roupão, pois não era obrigado a aparecer na parte central do programa. Masuyama, informado de que Mangiku queria vê-lo, havia esperado no camarim pelo fim do Hachijin. O espelho subitamente explodiu em chamas vermelhas quando Mangiku voltou, enchendo a porta com o farfalhar de suas roupas. Três discípulos e encarregados do vestuário aproximaram-se para remover o que devia ser removido e guarda-lo nos respectivos lugares. Os que deviam sair saíram, permanecendo apenas alguns discípulos perto do hibachi[2] no quarto ao lado. O camarim ficou silencioso de um momento para outro. De um alto-falante no corredor vinham os sons dos martelos dos assistentes do palco que desmontavam o cenário da peça. Estavam no fim de novembro e o vapor embaçava as vidraças, tristes como as de uma enfermaria de hospital. Crisântemos inclinavam-se graciosamente em um vaso esmaltado ao lado da penteadeira de Mangiku. Talvez porque seu nome artístico significasse literalmente “dez mil crisântemos”, gostava muito dessa flor.
Estava sentado sobre uma gorda almofada de seda púrpura, de frente para a penteadeira.
— Poderia dizer ao cavalheiro da Rua Sakuragi? — Mangiku, de acordo com o costume antigo, referia-se aos seus professores de dança e canto pelos nomes das ruas onde moravam. — Seria difícil para mim dizer-lhe. — Olhava diretamente para o espelho enquanto falava.
Masuyama, sentado perto da parede, via a nuca de Mangiku e no espelho a imagem do rosto ainda maquilado para o papel de Hinaginu. Os olhos não estavam em Masuyama; contemplavam de frente o próprio rosto. O rubor provocado pelo esforço do desempenho era visível ainda sob a camada de pó, como o sol nascente surgindo através de uma fina camada de gelo. Ele estava olhando para Hinaginu.
Na verdade, ele a via no espelho — Hinaginu, que ele acabava de personificar, Hinaginu, a filha de Mori Sanzaemon Yoshinari e noiva do jovem Sato Kazuenosuke. Seus elos matrimoniais desfeitos por causa da lealdade feudal do marido, Hinaginu comete suicídio para permanecer fiel àquela união “cujos elos eram tão tênues que jamais haviam compartilhado a mesma cama”. Hinaginu, no palco, morria possuída de um desespero tão grande que a impedia de continuar vivendo. A Hinaginu do espelho era um fantasma. Mesmo aquele fantasma, Mangiku sabia, estava naquele exato momento deixando o seu corpo. Seus olhos procuravam seguir Hinaginu. Mas a medida que se desvaneciam as paixões ardentes do personagem, o rosto de Hinaginu desaparecia. Mangiku despedia-se dela. Teria ainda sete espetáculos antes do fim. No dia seguinte o rosto de Hinaginu sem duvida voltaria ao molde maleável do rosto de Mangiku.
Masuyama, observando com prazer aquela abstração de Mangiku, quase sorria de afeição. Subitamente, Mangiku voltou-se para ele. Durante todo o tempo estivera consciente do olhar de Masuyama, mas, com o desembaraço do ator acostumado aos olhares do publico, continuou com o que estava dizendo.
– Trata-se daquelas passagens instrumentais. Simplesmente são curtas demais. Não quero dizer que não conseguiria passar por essa parte se me apressasse, mas isso tira a beleza de tudo. — Mangiku referia-se a musica da nova peça com dança que seria apresentada no mês seguinte. — Sr. Masuyama. o que acha?
– Concordo plenamente. Estou certo de que se refere a passagem logo depois de “Como é lento o fim do dia na ponte chinesa, em Seta.
– Sim, exatamente. Co-mo é len-to o fim do di-a... — Mangiku cantou a passagem em questão, marcando o ritmo com os dedos delicados.
– Eu direi a ele. Tenho certeza de que o cavalheiro da Rua Sakuragi vai compreender.
– Tem certeza de que não se importa? Sinto-me tão embaraçado incomodando tanto as pessoas o tempo todo.
Uma vez terminado o assunto, Mangiku costumava se levantar.
– Acho que vou tomar banho agora — disse.
Masuyama afastou-se da estreita porta do camarim, dando passagem para Mangiku. Este, com uma leve inclinação da cabeça, saiu para o corredor, acompanhado por um discípulo. Voltou-se um pouco para Masuyama e, sorrindo, acenou com a cabeça novamente. O ruge nos cantos dos seus olhos tinham um encanto indescritível. Masuyama sentiu que Mangiku estava consciente da sua afeição.
4
O grupo ao qual Masuyama pertencia ia trabalhar no mesmo teatro durante os meses de novembro, dezembro e janeiro e o programa de janeiro já estava sendo objeto de comentários. Seria encenada a peça de um autor do teatro moderno. O homem, cujo senso da própria importância não condizia com sua juventude, havia imposto varias condições, e Masuyama ocupou-se febrilmente com as complexas negociações que tinham por objetivo reunir, não só o dramaturgo e os atores, mas também a direção do teatro. Masuyama foi encarregado dessa parte porque os outros o consideravam um intelectual.
Uma das condições impostas pelo autor da peça era que a direção fosse confiada a um jovem talentoso de sua confiança. A direção do teatro aceitou. Mangiku também concordou, mas sem muito entusiasmo. Expressou suas duvidas dizendo:
— Na verdade, não sei, mas se esse jovem não compreender o Kabuki muito bem é fizer exigências pouco razoáveis, será muito difícil explicar.
Mangiku desejava um diretor mais velho, mais maduro — isto é, mais condescendente — para a peça.
A nova peça era uma dramatização em linguagem moderna do romance do século XII, Se ao menos eu pudesse modificá-los! O diretor administrativo da companhia resolveu não deixar a produção nas mãos do seu pessoal e incumbiu Masuyama dessa parte. Masuyama ficou nervoso com a ideia do trabalho que o esperava; mas, convencido de que a peça era de primeira qualidade, achou que valia a pena.
Uma vez prontos os scripts e distribuídos os papeis, houve uma reunião preliminar, certa manha, no meio do mês de dezembro, no salão de recepção ao lado do escritório do proprietário do teatro. Compareceram o executivo encarregado da produção, o escritor da peça, o diretor, o desenhista de cenários, os atores e Masuyama. A sala estava bem aquecida e os raios de sol entravam pelas janelas. Masuyama sempre se sentia bem nas reuniões preliminares. Era o mesmo que abrir um mapa e discutir um passeio projetado: onde tomamos o ônibus e onde começamos a caminhada? Existe agua potável no lugar? Onde vamos almoçar? De onde se tem a melhor vista? Voltaremos de trem? Ou será melhor esperarmos mais e voltarmos de navio?
Kawasaki, o diretor, chegou atrasado. Masuyama nunca vira uma peça dirigida por Kawasaki, mas conhecia sua fama. A despeito da sua juventude, fora escolhido para dirigir pegas de Ibsen e do moderno teatro americano para uma companhia teatral e no decurso de um ano tivera tanto sucesso, especialmente com as peças americanas, que um jornal lhe conferira um premio de teatro.
Os outros (exceto Kawasaki) já estavam reunidos. O desenhista, que nunca podia esperar nem um segundo para começar o trabalho, já estava anotando em um caderno especial as sugestões feitas pelos outros, frequentemente batendo com a ponta do lápis nas paginas em branco, como se sua mente estivesse explodindo com novas ideias. Finalmente o executivo começou a falar sobre o diretor.
— Pode ser tão talentoso como dizem, mas é muito jovem ainda. Os atores terão de ajuda-lo.
Nesse momento bateram a porta, e a secretaria fez entrar Kawasaki. Entrou com um olhar ofuscado, como se as luzes da sala fossem fortes demais para ele e, sem uma palavra, cumprimentou a todos com uma rígida inclinação da cabeça. Era alto, quase um metro e oitenta, com traços fortes e masculinos — mas extremamente sensíveis. Era um dia frio de inverno, mas Kawasaki vestia apenas uma capa de chuva muito fina e amarrotada. Sob a capa, um paletó de veludo canelado cor de tijolo. O cabelo liso e longo descia ate a ponta do nariz, obrigando-o a afasta-lo para trás constantemente. Masuyama ficou desapontado com essa primeira impressão. Esperava que um homem famoso por seu talento tentasse de alguma forma evitar os estereótipos da sociedade, mas Kawasaki vestia-se exatamente como se esperava que se vestisse um típico jovem do teatro moderno.
Kawasaki sentou-se na cadeira que lhe foi oferecida, a cabeceira da mesa. Não apresentou os delicados protestos de praxe por aquela honra. Olhava para o autor da peça, seu amigo íntimo, e a cada ator que lhe era apresentado resmungava um cumprimento qualquer, voltando imediatamente os olhos para o amigo. Masuyama lembrou-se de experiências semelhantes. Não era fácil para um homem treinado no teatro moderno, onde quase todos os atores são jovens, estabelecer um contato satisfatório com os atores do Kabuki, quase sempre cavalheiros imponentes e idosos fora do palco.
Os atores presentes àquela reunião preliminar, na verdade, procuraram demonstrar de certa forma seu desprezo por Kawasaki, sempre com a maior delicadeza e sem uma palavra hostil. Masuyama olhou para Mangiku. O ator mantinha-se modestamente calado, evitando qualquer demonstração de importância; não se via no seu rosto nenhum sinal do desprezo manifestado pelos outros. Masuyama sentiu crescer sua admiração e afeição por Mangiku.
Agora que estavam todos presentes, o autor fez um resumo da peça. Mangiku, provavelmente pela primeira vez em sua carreira — a não ser por papeis representados quando era criança — ia fazer um papel masculino. A pega era sobre um certo Grande Ministro que tinha dois filhos, um menino e uma menina. Por natureza, eles não tem as características dos respectivos sexos e são criados de acordo com suas tendências: o menino (na verdade a menina) finalmente vem a ser um General da Esquerda, e a menina (na verdade o menino) torna-se chefe. das damas de honra no Senyoden, o palácio das concubinas imperiais. Mais tarde, quando a verdade e revelada, passam a viver mais de acordo com seus sexos originais: o irmão casa-se com a quarta filha do Ministro da Direita, a irmã com um Conselheiro do Centro e tudo acaba bem.
O papel de Mangiku seria o da menina que é na realidade um homem. Embora fosse um papel masculino, Mangiku apareceria como homem nos poucos momentos da cena final. Até ali, seu papel seria o de um verdadeiro onnagata, como chefe das damas de honra no Senyoden. O autor e o diretor recomendaram a Mangiku que não tentasse de modo algum sugerir que era na verdade um homem, até a cena final.
Um aspecto interessante da pega era que inevitavelmente acabava satirizando a convenção Kabuki do onnagata. A chefe das damas de honra era na verdade um homem; exatamente como o papel representado por Mangiku. Não era tudo. Para que Mangiku, onnagata e homem ao mesmo tempo, pudesse desempenhar o papel, teria de desdobrar suas ações na vida real em dois níveis, algo muito diferente do caso do ator que se veste com roupas de mulher durante a peça para enganar as pessoas. As complexidades do papel fascinavam Mangiku.
As primeiras palavras de Kawasaki para Mangiku foram:
– Eu gostaria que desempenhasse o papel todo como mulher. Não faz a menor diferença que atue como mulher até mesmo na ultima cena. — Sua voz tinha uma sonoridade agradável e clara.
– Tem certeza? Se não se importa que eu desempenhe o papel desse modo, será muito mais fácil para mim.
– Em nenhum caso será fácil. Definitivamente não — disse Kawasaki em tom decidido.
Quando falava com convicção, seu rosto ficava vermelho como se tivessem acendido uma lâmpada dentro dele. A aspereza da sua voz provocou um mal-estar em todos. Os olhos de Masuyama voltaram-se para Mangiku. Ele abafava o riso com bom humor, as costas da mão contra os lábios. Os outros ficaram menos tensos, vendo que Mangiku não estava ofendido.
– Muito bem, então — disse o autor. — Vou ler o livro. — Abaixou os olhos saltados, que pareciam duplicados atrás das lentes grossas, e começou a ler o script que estava sobre a mesa.
Os ensaios dos papeis separados começaram dois ou três dias depois, sempre que os atores tinham algum tempo livre. Ensaios em conjunto só seriam possíveis nos poucos dias entre o fim do mês e o começo do programa do mês seguinte.
A não ser que todos os problemas estivessem resolvidos nessa ocasião, não teriam tempo para montar a peça.
Quando começaram os ensaios por partes, ficou aparente que Kawasaki era como um estranho perdido no meio deles. Não compreendia nada de teatro Kabuki e Masuyama viu-se obrigado a ficar sempre ao seu lado, explicando palavra por palavra a linguagem técnica daquele tipo de teatro, o que fazia Kawasaki por demais dependente dele. Logo que terminaram o primeiro ensaio, Masuyama convidou Kawasaki para um drinque.
Masuyama sabia que, para uma pessoa na sua posição, era um erro aliar-se ao diretor, mas achava que compreendia o que Kawasaki estava passando. As opiniões do jovem eram precisas e definidas, suas atitudes mentais saudáveis, e ele lançava-se ao trabalho com entusiasmo infantil. Masuyama compreendeu então por que o caráter de Kawasaki agradara tanto ao autor da peça; era como se a juventude genuína de Kawasaki agisse como um elemento purificador, uma qualidade desconhecida no mundo do Kabuki. Masuyama justificava sua amizade com Kawasaki alegando que procurava transformar essa qualidade em vantagem para o Kabuki.
Os ensaios gerais começaram finalmente no dia seguinte a última representação do programa de dezembro, dois dias depois do Natal. O movimento de fim de ano nas ruas podia ser ouvido através das janelas do teatro e dos camarins. Uma mesa de trabalho velha e gasta fora colocada ao lado de uma das janelas do grande salão de ensaios. Kawasaki e um dos principais auxiliares de Masuyama — o diretor de cena — sentaram-se de costas para a janela. Masuyama estava atrás de Kawasaki. Os atores estavam sentados no tatami encostado na parede. Cada um ia ate o centro da sala quando chegava a sua vez. O diretor de cena fazia o papel de ponto
Centelhas se cruzavam repetidamente entre Kawasaki e os atores.
— Neste ponto — dizia Kawasaki —, gostaria que ficasse de pé ao dizer: “Gostaria de poder ir a Kawachi e acabar com tudo isto.” Depois deve caminhar até a coluna a direita do palco.
– Eu simplesmente não posso, de modo algum, ficar de pé nesse local.
– Por favor, tente fazer ao meu modo. — Kawasaki forçava um sorriso, mas seu rosto empalidecia visivelmente com o orgulho ferido.
– Pode me pedir para ficar de pé, de hoje até o próximo Natal, mas eu não posso fazer isso. Nesse local eu devo estar pensando profundamente sobre alguma coisa. Como posso andar pelo palco quando estou pensando?
Kawasaki não respondeu, mas era evidente sua extrema irritação por ter sido interpelado nesses termos.
Já com Mangiku tudo era diferente. Se Kawasaki dizia: “Sente-se!”, Mangiku sentava, se ele dizia; “Levante-se!”, Mangiku se levantava. Obedecia passivamente a todas as ordens de Kawasaki. Masuyama achava que o entusiasmo de Mangiku pelo papel não justificava o fato de se mostrar muito mais obediente nos ensaios do que de hábito.
Masuyama precisou sair da sala para cuidar de certos negócios no momento em que Mangiku, tendo representado a cena do primeiro ato, voltava ao seu lugar perto da parede. Quando Masuyama voltou, defrontou-se com a seguinte cena: Kawasaki, quase deitado em cima da mesa, acompanhava atentamente o ensaio, sem se dar ao trabalho de afastar o cabelo dos olhos. Estava debruçado sobre os braços cruzados, os ombros sob o paletó de veludo tremendo de raiva contida. A direita de Masuyama havia uma parede branca com uma janela no meio, através da qual se via um balão de ar oscilando com o vento norte, com uma faixa anunciando uma liquidação de fim de ano. Nuvens carregadas de inverno pareciam desenhadas com giz contra o azul pálido do céu. Viu um santuário dedicado a Inari e um pequeno torii[3] vermelho vivo no telhado de um velho prédio. Mais à direita, Mangiku estava sentado ereto de costas para a parede, no estilo japonês, com as pernas cruzadas no tatami. O script es­tava aberto no seu colo e as pregas do seu quimono cinza-esverdeado caiam em retas perfeitas. De onde estava, ao lado da porta, Masuyama não podia ver o rosto de Mangiku de frente, mas os olhos, vistos de perfil, estavam completamente tranquilos, o olhar resolutamente fixo em Kawasaki.
Masuyama sentiu um súbito tremor de medo. Estava com um dos pés dentro da sala de ensaios, mas sentia agora que era quase impossível entrar.
6
Mais tarde, naquele mesmo dia, Masuyama foi chamado ao camarim de Mangiku. Quando inclinou a cabeça, como sempre fazia, para passar sob as cortinas da porta, sentiu um estranho bloqueio emocional. Mangiku o cumprimentou, todo sorridente, da sua almofada púrpura e ofereceu a Masuyama os doces recebidos de um visitante.
– O que achou do ensaio de hoje?
– Como disse? — Masuyama sobressaltou-se com a pergunta. Não era do feitio de Mangiku pedir sua opinião sobre esses assuntos.
– O que achou?
– Se tudo continuar tão bem como hoje, acho que a peça vai ser um sucesso.
– Acha mesmo? Estou com muita pena do Sr. Kawasaki. É tão difícil para ele. Os outros o tratam com tanta arrogância que fico nervoso. Tenho certeza de que percebeu, pelo ensaio, que pretendo fazer tudo exatamente como o Sr. Kawasaki quer. De qualquer modo, é precisamente como desejo representar esse papel e achei que poderia facilitar as coisas para o Sr. Kawasaki, mesmo sem a ajuda de ninguém mais. Não posso dizer aos outros, mas tenho certeza de que notarão, se eu fizer exatamente o que ele mandar. Sabem que geralmente sou muito difícil. É o mínimo que posso fazer para proteger o Sr. Kawasaki. Seria uma pena se ninguém ajudasse, quando ele esta se esforçando tanto.
Masuyama não sentiu nenhuma emoção especial ouvindo as palavras de Mangiku. Era muito provável, pensou, que o próprio Mangiku não soubesse que estava apaixonado: afinal, estava acostumado a representar o amor em escala muito mais heroica. Masuyama, por sua vez, achava que aqueles sentimentos — fosse qual fosse a definição dos mesmos — que surgiam no coração de Mangiku eram extremamente impróprios. Esperava de Mangiku uma demonstração de emoções muito mais transparente, artificial e este- tica.
Mangiku, contrariando seus hábitos, estava em uma atitude informal, o que emprestava ao seu corpo delicado uma espécie de languidez. O espelho refletia as flores vermelhas no vaso esmaltado e a nuca recentemente raspada de Mangiku.
O exaspero de Kawasaki tornou-se patético na véspera dos ensaios no palco. Assim que terminou o último ensaio em separado, convidou Masuyama para um drinque, parecendo ter chegado ao fim de sua capacidade de resistência. Masuyama estava ocupado naquele momento, mas duas horas mais tarde, encontrou Kawasaki ainda à sua espera no bar onde tinham combinado se encontrar. O bar estava cheio, embora fosse véspera de Ano-novo, quando os bares geralmente ficam desertos. Kawasaki estava pálido, bebendo sozinho. Era do tipo que, quanto mais bebe, mais pálido fica. Masuyama, notando a palidez de Kawasaki assim que entrou no bar, sentiu que o jovem estava transferindo para seus ombros uma carga espiritual injustamente pesada. Eles viviam em mundos diferentes; não havia nenhum motivo pelo qual a cortesia exigisse que as incertezas e a angustia de Kawasaki passassem para os ombros de Masuyama.
Kawasaki logo começou a provocar Masuyama, como este já esperava, acusando-o de agente duplo. Masuyama aceitou a provocação com um sorriso. Era cinco ou seis anos mais velho do que Kawasaki, mas possuía a autossuficiência de um homem que vivera entre pessoas que “conheciam as regras”. Ao mesmo tempo, sentia uma espécie de inveja daquele homem que jamais conhecera as dificuldades da vida, ou pelo menos, as dificuldades reais. Não era exatamente por falta de integridade moral que Masuyama se mostrava indiferente aos mexericos dos bastidores a seu respeito, agora que estava com seu lugar garantido na hierarquia do Kabuki; sua indiferença demonstrava que não tinha nada a ver com o tipo de sinceridade que podia destrui-lo.
Kawasaki falou:
– Estou farto disso tudo. Assim que a cortina se abrir na noite de estreia, terei o maior prazer em desaparecer. Os ensaios no palco começam amanha! É demais para mim, aborrecido como estou. Esta é a pior incumbência que já tive até agora. Cheguei ao meu limite. Nunca mais pretendo tomar de assalto um mundo que não é o meu.
– Mas, não é mais ou menos o que esperava, desde o começo? O Kabuki não e igual ao teatro moderno, afinal — disse Masuyama friamente.
As palavras de Kawasaki o surpreenderam.
– Mangiku é o pior de todos. Eu realmente não gosto dele. Nunca mais vou dirigir uma peça com ele. — Kawasaki olhava para os filetes espiralados de fumaça sob o teto baixo, como se estivesse enfrentando um inimigo invisível.
– Eu jamais teria imaginado isso. Tenho a impressão de que ele esta fazendo o melhor possível para cooperar.
– Por que pensa isso? O que ha de tão bom nele? Não me importo muito quando os outros atores não dão atenção ao que eu digo durante os ensaios ou quando tentam me intimidar, nem mesmo quando procuram sabotar toda a peça, mas Mangiku vai além do que posso suportar. Tudo o que faz e olhar para mim com aquele sorriso zombeteiro. No fundo, ele é completamente inflexível e me trata como se eu fosse uma criança ignorante. Por isso faz tudo exatamente como eu digo. É o único que obedece as minhas sugestões e isso me irrita mais ainda. Posso adivinhar o que esta pensando: “Se e assim que você quer, e assim que vou fazer, mas não espere que eu tome nenhuma responsabilidade pelo que acontecer na pega.” É exatamente o que esta sempre comunicando sem dizer uma palavra, é o pior tipo de sabotagem que conheço. Ele e o pior de todos.
Masuyama ouvia atônito, mas não achou prudente dizer a verdade a Kawasaki naquele momento. Hesitou até em garantir que Mangiku estava tentando ser amigável, quanto mais em revelar a verdade. Kawasaki estava confuso, sem saber como reagir as emoções completamente desconhecidas daquele mundo no qual fora subitamente lançado; se soubesse o que Mangiku sentia, talvez pensasse que não passava de mais uma armadilha. Seus olhos viam claro demais: por mais que conhecesse os princípios do teatro, não conseguia detectar aquela sombria presença estética que se escondia por trás dos textos.
7
Chegou o novo ano e com ele a primeira noite do novo programa.
Mangiku estava amando, Seus astutos discípulos foram os primeiros a comentar o fato. Masuyama, visitante frequente ao camarim de Mangiku, sentiu a verdade no ambiente. Mangiku estava envolto no seu amor como o bicho-da-seda no seu casulo, pronto para se transformar em borboleta. O camarim era o casulo do seu amor. Mangiku sempre procurara se isolar, mas o contraste com o movimento festivo do ano novo dava ao seu camarim uma seriedade silenciosa e estranhamente solene.
Na noite da estreia, Masuyama, notando que a porta do camarim de Mangiku estava aberta, resolveu dar uma olhada. Viu Mangiku de costas, sentado na frente do espelho, completamente vestido para a peça, esperando o aviso para entrar em cena. Observou o tom pálido de lilás do quimono de Mangiku, a curva suave dos ombros empoados e seminus, a peruca negra brilhante. Em momentos como esse, no cama­rim deserto, Mangiku parecia uma mulher ocupada em fiar; estava fiando o seu amor e ia continuar para sempre, o pensamento muito longe.
Masuyama compreendeu instintivamente que o molde para o amor daquele onnagata fora fornecido apenas pelo teatro. O teatro estava presente o tempo todo, o teatro onde o amor estava sempre gritando, se lamentando, derramando sangue. A musica que celebrava os píncaros sublimes do amor soava perpetuamente nos ouvidos de Mangiku, e cada gesto requintado do seu corpo era constantemente usado no palco para significar amor. Ate as pontas dos dedos, nada em Mangiku desconhecia o amor. Seus pés dentro das tabi[4] brancas, as cores sedutoras do quimono sob o manto apenas visíveis através das aberturas das mangas, sua nuca longa como a de um cisne, tudo estava a serviço do amor.
Masuyama tinha certeza de que Mangiku seria guiado na conquista do seu amor pelas emoções grandiosas dos seus papeis no palco. O ator comum pode enriquecer seu desempenho infundindo-o com as emoções de sua vida real, mas não Mangiku. No momento em que Mangiku se apaixonou, os amores de Yukihime, Omiwa, Hinaginu e de outras heroínas trágicas foram em seu auxilio.
A ideia de Mangiku apaixonado chocava Masuyama. Aquelas emoções trágicas que desejara com tanto ardor no seu tempo de estudante, aquelas sublimes emoções que Mangiku sempre evocava com sua presença corpórea no palco, envolvendo suas faculdades sensuais em chamas geladas, Mangiku estava agora visivelmente em sua vida real. Mas o objeto dessas emoções — sem negar seu grande talento — era completamente ignorante no que se referia ao Kabuki; não passava de um diretor jovem e vulgar, cuja qualificarão única para ser objeto do amor de Mangiku consistia no fato de ser um estranho naquele pais, um jovem viajante que logo deixaria o mundo do Kabuki para nunca mais voltar.
8
Se ao menos eu pudesse modificá-los! foi bem recebida. Kawasaki, apesar de ter anunciado sua intenção de desaparecer depois da noite de estreia, ia ao teatro todos os dias para se queixar do desempenho dos atores, correndo de um lado para o outro nas passagens subterrâneas sob o palco, examinando com curiosidade os mecanismos do alçapão, ou o banamicbi. Masuyama achou que o homem tinha algo de infantil na sua atitude.
As criticas dos jornais elogiaram Mangiku. Masuyama fez questão de mostra-las a Kawasaki, mas ele limitou-se a fazer um muxoxo, como uma criança teimosa, e a dizer com aspereza: ‘Todos representam bem. Mas não tiveram o que se pudesse chamar direção.” Naturalmente Masuyama não repetiu para Mangiku essas palavras contundentes, e o próprio Kawasaki se comportava muito bem quando estava com Mangiku. Contudo, o que irritava Masuyama era o fato de que Mangiku, completamente cego no que se referia aos sentimentos dos outros, não tivesse sequer questionado o reconhecimento de Kawasaki em relação a sua boa vontade. Mas Kawasaki era absolutamente insensível aos sentimentos dos outros. Este era o único traço que Kawasaki e Mangiku tinham em comum.
Uma semana depois da primeira apresentação da peça, Masuyama foi chamado ao camarim de Mangiku. Sobre a mesa de Mangiku estavam dispostos amuletos e relíquias do santuário em que ele regularmente fazia suas orações, bem como alguns docinhos de Ano-novo. Sem duvida os doces seriam distribuídos entre seus discípulos. Mangiku deu alguns deles a Masuyama, sinal de que estava de bom humor.
– O Sr. Kawasaki esteve aqui hé pouco — disse ele.
– Sim, eu o vi na porta.
– Será que está ainda no teatro?
– Acredito que vá ficar ate o fim de Se ao menos...
– Ele disse alguma coisa a respeito de ter algum compromisso depois?
– Não, nada de especial.
– Então, quero lhe pedir um pequeno favor.
Masuyama assumiu o ar mais compenetrado possível.
– E qual é ?
– Esta noite, compreende, quando terminar o espetáculo... Quero dizer, esta noite.... — O rosto de Mangiku ficou corado. Sua voz estava mais clara e estridente do que de hábito — Esta noite, quando terminar o espetáculo, acho que gostaria de jantar com ele. Poderia perguntar a ele se esta livre?
– Sim, eu pergunto.
– E horrível de minha parte pedir-lhe isso, não é?
– Não, esta tudo bem. — Masuyama percebeu que os olhos de Mangiku não percorriam mais o camarim, mas estavam fixos, procurando decifrar sua expressão. Parecia esperar — desejar mesmo — ver alguma perturbação em Masuyama. — Muito bem — disse Masuyama, levantando-se imediatamente — Eu o informarei.
Assim que chegou ao saguão, Masuyama encontrou Kawasaki vindo em sua direção; aquele encontro casual, no meio do saguão cheio de gente, durante o intervalo, pareceu-lhe um ato do destino. A atitude de Kawasaki não combinava com o ambiente festivo do saguão. O ar de superioridade adotado pelo jovem parecia ridículo entre aquela multidão de cidadãos sólidos vestidos com suas melhores roupas e que estavam no teatro pelo simples prazer de assistir a peça.
Masuyama levou Kawasaki para um canto e o informou sobre o convite de Mangiku.
– O que será que ele quer de mim agora? Jantar juntos — engraçado. Não tenho nada para fazer esta noite e não vejo razão para não ir, mas não compreendo o porquê.
– Suponho que queira discutir alguma coisa sobre a peça.
– A peça! Eu já disse tudo o que tinha a dizer sobre o assunto.
Nesse momento, um desejo gratuito de fazer mal, aquela emoção geralmente associada no palco aos vilões secundários, instalou-se no coração de Masuyama, sem que ele se desse conta; não percebia que estava agindo agora como o personagem de uma peça.
– Não compreende — esse convite para jantar é uma ótima oportunidade para dizer a ele tudo o que pensa, desta vez sem poupar palavras.
– Ainda assim...
– Não acredito que tenha coragem de dizer tudo a ele.
Essa observação feriu o orgulho do jovem.
– Esta certo, eu vou. Sempre achei que mais cedo ou mais tarde teria oportunidade de falar francamente com ele. For favor, diga a Mangiku que aceito o convite.
Mangiku aparecia na ultima parte do programa e só ficou livre no fim do espetáculo. Quando termina o espetáculo, geralmente os atores trocam de roupa rapidamente e saem do teatro, mas Mangiku não demonstrava nenhum sinal de pressa, enquanto se vestia, no camarim com uma capa e um cachecol sobre o quimono de passeio. Esperava Kawasaki. Quando este apareceu finalmente, cumprimentou Mangiku com frieza, sem tirar as mãos dos bolsos do sobretudo.
O discípulo que sempre atendia Mangiku como sua “camareira” apareceu correndo, como quem vem anunciar uma calamidade.
– Começou a nevar — informou ele, com uma mesura.
– Muita neve? — Mangiku levou a ponta da capa ao rosto.
– Não, uma pequena pancada.
– Vamos precisar de um guarda-chuva até o carro — disse Mangiku.
O discípulo saiu as pressas para apanhar o guarda-chuva.
Masuyama os acompanhou até a saída do teatro. O porteiro havia gentilmente colocado as sandálias de Mangiku e de Kawasaki lado a lado. O discípulo de Mangiku ficou do lado de fora, sob a neve fina, segurando o guarda-chuva aberto. A neve caia com tanta leveza que mal aparecia contra a parede escura de concreto, no outro lado da rua. Um ou dois flocos chegaram até o degrau da entrada do teatro.
Mangiku curvou-se cortesmente para Masuyama.
– Vamos sair agora — disse. O sorriso nos seus lábios foi semi-encoberto pelo cachecol. Voltou-se para o discípulo. — Está bem. Eu levo o guarda-chuva. Gostaria que você fosse avisar o motorista que estamos prontos.
Mangiku segurou o guarda-chuva sobre a cabeça de Kawasaki. Quando Kawasaki com seu sobretudo e Mangiku com sua capa saíram lado a lado, alguns flocos de neve voaram subitamente — quase saltando — da parte superior do guarda-chuva que os abrigava.
Masuyama os viu partir. Era como se um guarda-chuva imenso, negro e barulhento, estivesse se abrindo dentro do seu coração. Sentiu que a ilusão nascida quando era menino, na primeira vez que viu Mangiku no palco, uma ilusão que ele havia mantido intacta, mesmo depois de começar a trabalhar no Kabuki, naquele instante se esfacelava, espalhando- se em todas as direções, como uma delicada peça de cristal deixada cair de grande altura. Afinal, agora sei o que quer dizer desilusão, pensou ele. O melhor que tenho a fazer e desistir do teatro.
Mas Masuyama sabia que, ao lado da desilusão, outro sentimento se apossava dele, o ciúme. Teve medo de pensar até onde essa nova emoção poderia leva-lo.

[1] Hanamichi — um compartimento sob o palco, visível para os espectadores, com uma porta de alçapão. Faz parte do cenário típico do Kabuki ou teatro popular. (N. da T.).
[2] Hibachi — braseiro, aquecedor a carvao. (N. da T.)
[3] Torii — portão de um templo japonês. (N.da T.)
[4] Tabi — meias. (N. da T.)

Um comentário:

  1. O texto é apaixonante. Não gostei da "chave de latão" no final. Poderia ter encerrado com a queda da peça de cristal...

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