sábado, 18 de abril de 2015

43 – O vampiro de Curitiba – D. Trevisan

Publicado em 1965, há cinquenta anos, “O vampiro de Curitiba” do escritor paranaense Dalton Trevisan (1925- ) é um dos grandes contos escritos em nosso pais. Meio aparentado com o “Feliz Ano Velho” do Ruben Fonseca, mostra a imagem vista do outro lado da janela. Um texto que sai lá de dentro, diretamente do fundo das tripas, sem restriçnoes e sem necessidade de elaboração.
O vampiro de Curitiba
Dalton Trevisan
Ai, me dá vontade até de morrer. Veja, a boquinha dela está pedindo beijo, beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte e
quatro horas e desmaia feliz. É uma que molha o lábio com a ponta da língua para ficar mais excitante. Por que Deus fez da mulher o suspiro do moço e
o sumidouro do velho? Não é justo para um pecador como eu. Ai, eu morro só de olhar para ela, imagine então se. Não imagine, arara bêbada. São onze da manhã, não sobrevivo até à noite. Se fosse me chegando, quem não quer nada - ai, querida, é uma folha seca ao vento - e encostasse bem devagar
na safadinha. Acho que morria: fecho os olhos e me derreto de gozo. Não quero do mundo mais que duas ou três só para mim. Aqui diante dela, pode que se encante com o meu bigodinho. Desgraçada! Fez que não me enxergou: eis uma borboleta acima de minha cabecinha doida. Olha através de mim e lê o cartaz de cinema no muro. Sou eu nuvem ou folha seca ao vento? Maldita feiticeira, queimá-la viva, em fogo lento. Piedade não tem no coração negro de ameixa. Não sabe o que é gemer de amor. Bom seria pendurá-la cabeça para baixo, esvaída em sangue.
Se não quer, por que exibe as graças em vez de esconder? Hei de chupar
a carótida de uma por uma. Até lá enxugo os meus conhaques. Por causa de
uma cadelinha como essa que aí vai rebolando-se inteira. Quieto no meu
canto, ela que começou. Ninguém diga sou taradinho. No fundo de cada
filho de família dorme um vampiro - não sinta gosto de sangue. Eunuco,
ai quem me dera. Castrado aos cinco anos. Morda a língua, desgraçado. Um
anjo pode dizer amém! Muito sofredor ver moça bonita - e são tantas.

Perdoe a indiscrição, querida, deixa o recheio do sonho para as formigas? O,
você permite, minha flor? Só um pouquinho, um beijinho só. Mais um, só
mais um. Outro mais. Não vai doer, se doer eu caia duro aos seus pés. Por
Deus do céu não lhe faço mal - o nome de guerra é Nelsinho, o Delicado.

Olhos velados que suplicam e fogem ao surpreender no óculo o lampejo
do crime? Com elas usar de agradinho e doçura. Ser gentilíssimo. A impaciência
é que me perde, a quantas afugentei com gesto precipitado? Culpa
minha não é. Elas fizeram o que sou - oco de pau podre, onde floresce
aranha, cobra, escorpião. Sempre se enfeitando, se pintando, se adorando no
 espelhinho da bolsa. Se não é para deixar assanhado um pobre cristão por
que é então? Olhe as filhas da cidade, como elas crescem: não trabalham nem
fiam, bem que estão gordinhas. Essa é uma das lascivas que gostam de se
coçar. Ouça o risco da unha na meia de seda. Que me arranhasse o corpo
inteiro, vertendo sangue do peito. Aqui jaz Nelsinho, o que se finou de
ataque. Gênio do espelho, existe em Curitiba alguém mais aflito que eu?

Não olhe, infeliz! Não olhe que você está perdido. É das tais que se
divertem a seduzir o adolescente. Toda de preto, meia preta, upa lá lá. Órfã
ou viúva? Marido enterrado, o véu esconde as espinhas que, noite para o dia,
irrompem no rosto - o sarampo da viuvez em flor. Furiosa, recolhe o leiteiro
e o padeiro. Muita noite revolve-se na cama de casal, abana-se com leque
recendendo a valeriana. Outra, com a roupa da cozinheira, à caça de soldado
pela rua. Ela está de preto, a quarentena do nojo. Repare na saia curta,
distrai-se a repuxá-la no joelho. Ah, o joelho... Redondinho de curva mais
doce que o pêssego maduro. Ai, ser a liga roxa que aperta a coxa fosforescente
de brancura. Ai, o sapato que machuca o pé. E, sapato, ser esmagado pela
dona do pezinho e morrer gemendo. Como um gato!

Veja, parou um carro. Ela vai descer. Colocar-me em posição. Ai, querida,
não faça isso: eu vi tudo. Disfarce, vem o marido, raça de cornudo. Atraio
pobre
rapaz que se deite com a mulher. Contenta-se em espiar ao lado da cama - acho
que ficaria inibido. No fundo, herói de bons sentimentos. Aquele tipo do bar,
aconteceu com ele. Esse aí um dos tais? Puxa, que olhar feroz. Alguns preferem
é o rapaz, seria capaz de? Deus me livre, beijar outro homem, ainda mais de bigode e catinga de cigarro? Na pontinha da língua a mulher filtra o mel que
embebeda o colibri e enraivece o vampiro.

Cedo a casadinha vai às compras. Ah, pintada de ouro, vestida de
pluma, pena e arminho - rasgando com os dentes, deixá-la com os cabelos
do corpo. O bracinho nu e rechonchudo - se não quer por que mostra em vez de esconder? -, com uma agulha desenho tatuagem obscena. Tem piedade, Senhor, são tantas, eu tão sozinho.

Ali vai uma normalista. Uma das tais disfarçada? Se eu desse com o famoso bordel. Todas de azul e branco - ó mãe do céu! - desfilando com meia preta e liga roxa no salão de espelhos. Não faça isso, querida, entro em levitação: a força dos vinte anos. Olhe, suspenso nove centímetros do chão, desferia vôo não fora o lastro da pombinha do amor. Meu Deus, fique velho depressa. Feche o olho, conte um, dois, três e, ao abri-lo, ancião de barba branca. Não se iluda, arara bêbada. Nem o patriarca merece confiança, logo mais com a ducha fria, a cantárida, o anel mágico - conheci cada pai de família!
Atropelado por um carro, se a polícia achasse no bolso esta coleção de
retratos? Linchado como tarado, a vergonha da cidade. Meu padrinho nunca
perdoaria: o menino que marcava com miolo de pão a trilha na floresta. Ora
uma foto na revista do dentista. Ora na carta a uma viuvinha de sétimo dia.
Imagine o susto, a vergonha fingida, as horas de delírio na alcova - à palavra
alcova um nó na garganta.

Toda família tem uma virgem abrasada no quarto. Não me engana, a
safadinha: banho de assento, três ladainhas e vai para a janela, olho
arregalado
no primeiro varão. Lá envelhece, cotovelo na almofada, a solteirona na sua
tina de formol.

Por que a mão no bolso, querida? Mão cabeluda do lobisomem. Não olhe
agora. Cara feia, está perdido. Tarde demais, já vi a loira: milharal ondulante
ao
peso das espigas maduras. Oxigenada, a sobrancelha preta - como não roer
unha? Por ti serei maior que o motociclista do Globo da Morte. Deixa estar,
quer
bonitão de bigodinho. Ora, bigodinho eu tenho. Não sou bonito, mas sou
simpático, isso não vale nada? Uma vergonha na minha idade. Lá vou eu atrás
dela, quando menino era a bandinha do Tiro Rio Branco.

Desdenhosa, o passo resoluto espirra faísca das pedras. A própria égua
de Átila - onde pisa, a grama já não cresce. No braço não sente a baba do
meu olho? Se existe força do pensamento, na nuca os sete beijos da paixão.
Vai longe. Não cheirou na rosa a cinza do coração de andorinha. A loira,
tonta, abandona-se na mesma hora. O morcego, ó andorinha, ó mosca! Mãe
do céu, até as moscas instrumento do prazer - de quantas arranquei as asas?
Brado aos céus: como não ter espinha na cara?

Eu vos desprezo, virgens cruéis. A todas poderia desfrutar - nem uma
baixou sobre mim o olho estrábico de luxúria. Ah, eu bode imundo
e chifrudo, rastejariam e beijavam a cola peluda. Tão bom, só posso morrer.
Calma, rapaz: admirando as pirâmides marchadoras de Quéops, Quéfren e
Miquerinos, quem se importa com o sangue dos escravos? Me acuda,
á Deus. Não a vergonha, Senhor, chorar no meio da rua. Pobre rapaz na
danação dos vinte anos. Carregar vidro de sanguessugas e, na hora do perigo,
pregá-las na nuca?

Se o cego não vê a fumaça e não fuma, ó Deus, enterra-me no olho a
tua agulha de fogo. Não mais cão sarnento atormentado pelas pulgas, que
dá voltas para morder o rabo. Em despedida - á curvas, ó delícias -
concede-me a mulherinha que aí vai. Em troca da última fêmea pulo no
braseiro - os pés em carne viva. Ai, vontade de morrer até. A boquinha dela pedindo beijo - beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita
vinte e quatro horas e desmaia feliz.


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