segunda-feira, 9 de março de 2015

36 – Signos e símbolos – V. Nabokov

"Signos e símbolos" do escritor russo Vladimir Nabokov é considerado como um dos contos mais perfeitos já escritos. Sua leitura, e os segredos nele escondidos são intrigantes. Maestria de um grande escritor.

Signos e símbolos
Vladimir Nabokov
Tradução de Julia Cunha

Pela quarta vez como em tantos anos eles foram confrontados com o dilema do que dariam de presente de aniversário a um jovem rapaz com uma mente irremediavelmente perturbada. Vontades ele não tinha nenhuma. Objetos feitos pelo homem eram para ele colmeias do mal que reverberavam ao embalo de atividades funestas que apenas ele podia perceber ou confortos brutais que se revelariam completamente inúteis em seu mundo abstrato. Depois de descartarem uma série de itens que poderiam ofendê-lo ou apavorá-lo (aparelhos eletrônicos, por exemplo, eram um tabu), seus pais se decidiram por uma delicada e inocente lembrancinha: uma cesta com dez potinhos de geleia de frutas diferentes.
Quando o rapaz nasceu, eles já estavam casados há bastante tempo; cerca de vinte anos se passaram e agora eram bem velhos. Ela tinha cabelo cinza e sem graça, presos num coque desleixado. Seus vestidos eram pretos e baratos. Ao contrário de outras mulheres da sua idade (como a Sra. Sol, a vizinha de porta, que tinha o rosto todo pintado de rosa e lilás e cujo chapéu mais parecia um canteiro de flores), ela apresentava uma cara limpa e branca à dura luz da primavera. Seu marido, que chegou a ser um empresário razoavelmente bem sucedido em sua terra natal, era hoje totalmente dependente do irmão, Isaac, um verdadeiro americano de quase quarenta anos. Eles raramente viam Isaac e o apelidaram de “O Príncipe”.
Naquela sexta-feira tudo deu errado. O metrô pifou entre duas es- tações e eles passaram quinze minutos sem ouvir nada, apenas a batida obediente dos corações e o farfalhar de jornais. O ônibus que deveriam tomar em seguida atrasou e os deixou esperando mofando na esquina por uma eternidade; quando enfim chegou, estava cheio de colegiais tagarelas. Chovia muito enquanto eles atravessaram o caminho de barro que levava ao sanatório. Lá tiveram de esperar novamente, e em vez de seu menino, arrastando os pés pelo chão como geralmente fazia (seu pobre rosto pipocado de espinhas, mal barbeado, carrancudo, confuso), uma enfermeira que eles conheciam e de quem não gostavam muito entrou na sala e explicou detalhadamente que o filho deles tinha tentado outra vez acabar com a própria vida. Ele estava bem, disse ela, mas uma visita poderia abalá-lo. O lugar era tão carente de funcionários, as coisas se perdiam ou se misturavam tão facilmente que decidiram não deixar o presente ali, mas trazê-lo em sua próxima visita.
Ela esperou que o marido abrisse o guarda-chuva e segurou seu braço. Ele limpava a garganta ruidosa e insistentemente, como fazia quando estava chateado. Eles chegaram até o abrigo do ponto de ônibus do outro lado da rua e fecharam o guarda-chuva. A poucos metros dali, debaixo de uma árvore trêmula e gotejante, um pequeno pássaro imaturo e já meio morto se contorcia inutilmente em uma poça.
No longo caminho até o metrô, ela e o marido não trocaram uma só palavra e sempre que ela olhava para suas mãos envelhecidas (veias inchadas, manchas marrons), contorcendo o cabo do guarda-chuva, sentia lágrimas tentando cair. Enquanto olhava em volta em busca de alguma distração, teve um suave calafrio, um misto de compaixão e admiração, ao notar que um dos passageiros — uma garota com cabelos escuros e as unhas do pé imundas pintadas de vermelho — chorava no ombro de uma mulher mais velha. Com quem aquela mulher se parecia? Parecia Rebecca Borisovna, cuja filha se casara com um dos Soloveichiks — em Minsk, anos atrás.
Da última vez que ele tentou fazer isso, seu método tinha sido, nas palavras do médico, uma obra-prima da inventividade; ele teria conseguido não fosse um invejoso companheiro de hospital ter achado que ele estava aprendendo a voar e interrompido bem na hora. O que ele realmente queria era cavar um buraco em seu mundo e escapar.
A lógica de seus delírios chegou a ser tema de um longo artigo publicado em uma revista científica, mas ela e o marido já haviam desvendado o mistério muito antes. “Mania referencial”, dizia o artigo de Herman Brink. Casos raros em que o paciente imagina que tudo o que acontece ao redor seja uma referência velada à sua personalidade e existência. Ele exclui pessoas de carne e osso da conspiração porque se considera muito mais inteligente que elas. A natureza o espreita onde quer que ele vá. Nuvens no céu transmitem com vagarosos sinais informações extremamente detalhadas sobre ele umas para as outras. Seus pensamentos mais íntimos são discutidos ao anoitecer por árvores sombrias que gesticulam sem parar em um alfabeto manual. Superfícies irregulares, manchinhas e sardas formam terríveis mensagens que ele é obrigado a interceptar. Tudo é cifrado e tudo fala sobre ele. Alguns dos espiões são observadores imparciais, como superfícies de vidro e até piscinas; outros, como casacos na vitrine de uma loja, são testemunhas preconceituosas, no fundo, linchadores; outros ainda (água corrente, tempestades) são tão histéricos que beiram a insanidade, têm uma opinião distorcida a seu respeito e interpretam suas ações de modo grotescamente errado. Ele precisa estar o tempo inteiro alerta e dedicar cada minuto e cada centelha da vida à decodificação da ondulação das coisas. Até o ar que ele exala é indexado e arquivado. Se ao menos o interesse que ele desperta ficasse limitado às coisas ao seu redor, o que infelizmente não acontece! Com a distância, as torrentes de ofensas selvagens aumentam em volume e volubilidade. Ampliados um milhão de vezes, seus glóbulos sanguíneos passam por cima de vastas planícies; mais além, grandes montanhas de solidez e altura insuportáveis resumem, a ponto de granitos e de lamentosos abetos, a verdade última de seu ser.

Quando emergiram do ar sufocante e viciado do metrô, os últimos raios do dia se misturavam às luzes da rua. Ela queria comprar peixe para o jantar, por isso, entregou ao marido a cestinha de geleias e disse para ele ir para casa. Ele já estava no meio do caminho quando lembrou que tinha dado as chaves à mulher no começo do dia.
Em silêncio, sentou-se nos degraus e em silêncio se levantou quando, cerca de dez minutos depois, ela veio se arrastando pesadamente pelas escadas, sorrindo amarelo e balançando a cabeça em desaprovação à sua própria tolice. Entraram no apartamento de dois quartos e ele foi imediatamente se olhar no espelho. Forçando os cantos da boca com os polegares e fazendo uma careta que mais parecia uma máscara, tirou sua nova e desconfortável dentadura, desgrudando os fios de saliva que o prendiam ao objeto. Leu o jornal impresso em russo enquanto ela colocava a mesa. Ainda lendo, comeu o pálido jantar que nem exigia dentes para ser mastigado. Ela sabia como andava seu humor e também ficou calada.
Quando ele foi para a cama, ela permaneceu na sala de estar com seu pacote de cartas de baralho sujas e seus álbuns de fotografias velhas. Do outro lado do estreito pátio, onde a chuva tilintava em algumas latas de lixo, uma luz suave vinha das outras janelas, e em uma delas dava para ver um homem de calças pretas com as mãos cruzadas na nuca e os cotovelos levantados, deitado inerte em sua cama desforrada. Ela fechou a persiana e pegou as fotos. Quando bebê, ele parecia mais surpreso que a maioria dos bebês. Uma empregada alemã que eles tiveram em Leipzig e seu noivo de cara gorda caíram de uma dobra do álbum. Minsk, a Revolução, Leipzig Berlim, Leipzig, novamente, uma casa de fachada enviesada, totalmente fora de foco. Aos quatro anos de idade, em um parque: temperamental, tímido, com a testa franzida, evitando olhar para um esquilo ao longe, como costumava fazer com qualquer estranho. Tia Rosa, uma senhora espalhafatosa e de olhos arregalados que tinha vivido em um mundo chacoalhado por más notícias, falências, acidentes de trem e tumores cancerígenos até que os alemães a enviassem para a morte junto com todas as pessoas com quem ela se preocupava. Aos seis anos — que foi quando ele desenhou pássaros maravilhosos com mãos e pés humanos e sofria de insônia como um homem feito. Seu primo, hoje um famoso jogador de xadrez. Ele de novo, com cerca de oito anos, já difícil de entender, com medo do papel de parede do corredor, com medo de uma certa gravura em um livro que mostrava uma mera paisagem idílica com pedras na encosta de uma colina e um pneu velho pendurado no galho de uma árvore sem folhas. Aos dez: foi no ano que deixaram a Europa. A vergonha, a pena, as dificuldades humilhantes, as crianças feias, cruéis e atrasadas com quem ele foi obrigado a conviver naquela escola especial. Então chegou um momento em sua vida, bem durante um longo período de convalescença após uma pneumonia, em que essas suas pequenas fobias que os pais teimaram em considerar como excentricidades de uma criança prodígio foram se agravando, formando um denso emaranhado de ilusões que interagiam logicamente umas com as outras, tornando-se completamente inacessíveis às mentes normais.
Tudo isso e muito mais ela aceitou, afinal, viver é aceitar a perda de uma alegria após a outra. No seu caso não eram nem sequer alegrias, e sim meras possibilidades de melhora. Ela pensou nas recorrentes ondas de dor que, por uma razão ou por outra, ela e o marido tiveram que suportar; nos gigantes invisíveis que feriam seu filho de um jeito inimaginável; na quantidade incalculável de ternura que havia no mundo; no destino dessa ternura, que era ser esmagada ou desperdiçada, ou transformada em loucura; nas crianças abandonadas cantando para si mesmas em um cantinho empoeirado; nas belas ervas daninhas que não conseguem se esconder das mãos do fazendeiro e assistem impotentes a essa símia sombra que delas se aproxima para roubar suas flores já então despedaçadas, à medida que cai a terrível escuridão da noite.

Passava da meia-noite quando, da sala de estar, ela ouviu o marido gemer. Ele se aproximou, cambaleando, usando por cima do pijama o velho sobretudo de gola astracã que ele achava muito melhor do que seu confortável roupão azul.
“Não consigo dormir!”, ele resmungou.
“Por quê?”, perguntou. “Por que você não consegue dormir? Você estava tão cansado.”
“Não consigo dormir porque estou morrendo”, disse ele, deitando-se no sofá.
“É o seu estômago? Você quer que eu chame o Dr. Solov?”
“Nada de médicos, nada de médicos”, gemeu. “Para o diabo com os médicos! Temos que tirá-lo de lá depressa. Do contrário, seremos culpados. Culpados!” Ele se deixou cair sentado no sofá, os dois pés presos ao chão, batendo na testa com o punho fechado.
“Tudo bem”, ela disse calmamente. “Vamos trazê-lo para casa amanhã de manhã.”
“Eu queria um pouco de chá”, disse o marido, indo para o banheiro.
Com dificuldade, ela pegou algumas cartas de baralho e uma ou duas fotografias que tinham caído no chão: o valete de copas, o nove de espadas, o ás de espadas, a empregada Elsa e seu namorado bestial. Ele voltou revigorado, dizendo em voz alta: “Está tudo planejado. Vamos dar o quarto para ele. Cada um de nós vai passar uma parte da noite na cama, ao seu lado, e outra no sofá. O médico virá aqui pelo menos duas vezes por semana. Não importa o que O Príncipe disser e, de todo modo, ele não vai falar nada já que assim vai sair até mais barato.”
O telefone tocou. Era uma hora incomum para ele tocar. Ele ficou parado no meio do quarto, tateando com o pé em busca do chinelo que havia caído. A boca sem dentes se abriu de um jeito infantil enquanto encarava a mulher. Por ter um inglês melhor que o dele, era ela quem atendia as chamadas.
“Gostaria de falar com o Charlie” disse uma voz monótona de mulher.
“Para que número você ligou?... Não. Você discou o número errado.”
Ela devolveu o telefone suavemente à mesinha e sua mão buscou o coração velho e cansado. “Isso me assustou”, disse ela.
Ele sorriu por um segundo e logo retomou seu animado monólogo. Iriam buscá-lo assim que o dia raiasse. Para seu próprio bem, manteriam todas as facas em uma gaveta trancada. Nem em seus piores momentos ele apresentava perigo para os outros.
O telefone tocou de novo. A mesma voz ansiosa e impassível pro- curando por Charlie.
“Você está com o número errado. Vou te explicar o que você está fazendo: você está girando a letra O em vez do zero.”

Sentaram para beber seu inesperado e festivo chá da meia-noite. O presente de aniversário estava sobre a mesa. Ele bebia ruidosamente; seu rosto estava vermelho; de vez em quando erguia o copo e fazia um movimento circular para que o açúcar se dissolvesse. A veia na lateral de sua cabeça, onde havia uma enorme marca de nascença, se inchou visivelmente, e, embora ele tivesse se barbeado naquela manhã, um pelinho prateado apareceu em seu queixo. Enquanto ela lhe servia mais uma xícara de chá, ele pôs os óculos e examinou novamente, cheio de prazer, o potinho amarelo e luminoso, o verde, o vermelho. Seus lábios úmidos e desajeitados liam em voz alta os nomes nas etiquetas: damasco, uva, ameixa, marmelo. Ele tinha chegado ao potinho de maçã-verde quando o telefone tocou novamente.

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