sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

35 – Os fugitivos – A. Carpentier

“Os fugitivos” do escritor cubano, Alejo Carpentier (1904-1980), é um conto de simples leitura que traz uma das mais fortes denuncias ao escravismo nas Américas, uma das maiores tragédias da humanidade que jamais devera ser esquecida. Carpentier, escreveu outros grandes contos com propostas mais complexas de estrutura, como “El caminho de Santiago” e “Viaje a la semilla” mas a força dos fugitivos é, para mim, insuperável.

Os fugitivos
Alejo Carpentier
Tradução Mario Pontes

I
O rastro morria no pé de uma árvore. E, inconfundível, um forte cheiro de negro invadia o ar cada vez que a brisa impelia para o alto as moscas que trabalhavam em túneis de frutas podres. Mas o cão – sempre o haviam chamado apenas Cão – estava cansado. Espojou-se entre as ervas para desenriçar as costas e distender os músculos. Muito longe dali, os gritos dos perseguidores perdiam-se no entardecer. O cheiro de negro persistia. Talvez o chimarrão estivesse escondido em algum lugar lá no alto, escarranchado em um galho, escutando com os olhos. Contudo, Cão já não pensava na caçada. Havia ali outro cheiro, na terra vestida pelo bejucal, que a passagem do próximo ser humano apagaria para sempre. Cheiro de fêmea. Cheiro que se havia fixado nas costas de Cão, quando ele estivera espojando-se de patas para o ar, rindo com as presas; cheiro que tentava alcançar esticando uma língua demasiado curta para alcançar o vale entre suas omoplatas.
As sombras tomavam-se mais úmidas. Cão deu um salto no ar e caiu sobre as patas. Voando devagar, os sinos do engenho ergueram-lhe as orelhas. No vale, neblina e fumaça reuniam-se na mesma imobilidade azulada, sobre a qual flutuavam, cada vez mais silhuetadas, uma chaminé de tijolos, um teto de grandes beirais, a torre da igreja, e luzes pareciam acender-se no fundo de um lago. Cão tinha fome. Mas ali havia cheiro de fêmea. E às vezes ainda se sentia envolvido pelo cheiro de negro. Contudo, o cheiro do seu próprio desejo, atraído pelo cheiro de outro desejo, era mais forte do que todos os demais. Cão espigou as patas traseiras e esticou o pescoço. O ventre encolhia-se para dentro das costelas, seguindo o ritmo de sua respiração curta e ansiosa. As frutas, demasiado cheias de sol, caíam aqui e ali com um ruído molhado, espalhando pelo chão os odores de polpas ainda mornas.
Cão se pôs a correr em direção ao monte, com a cauda caída, como se o perseguisse o chicote do capataz. Cheirava a fêmea, e isso contrariava o seu próprio sentido de orientação. Seu focinho seguia um rastro sinuoso, que às vezes voltava sobre si mesmo, abandonava a trilha, intensificava-se nas ramas de um espinheiro, perdia-se nas folhas que a fermentação tornava demasiado ácidas, e renascia, com ines­perado vigor, em um pedacinho de chão varrido por uma cauda. De repente Cão desviou-se da pista invisível, do fio que se torcia e distorcia, para investir contra um furão. Com duas sacudidelas, que produziram um som de castanholas dentro de uma luva, quebrou-lhe a coluna vertebral, lançando-o contra um tronco. Cão deteve-se de repente, deixando uma pata suspensa no ar. Latidos muito distantes rolavam montanha a baixo.
Não eram os da matilha do engenho. O tom era diferente, muito mais áspero e mais alto, vinha do fundo da garganta e poderosas fauces o enrouqueciam. Em algum lugar travava-se uma batalha de machos que não levavam, como ele, Cão, uma coleira de fios de cobre, com placa numerada. Diante daquelas vozes desconhecidas, muito mais lupinas do que tudo que até então tinha ouvido, Cão sentiu medo. Voltou-se e correu no sentido inverso, até que a vegetação pintou-se de lua. Já não cheirava a fêmea. Cheirava a negro. E de fato la estava o negro, com seu calção de riscado, boca aberta, adormecido. Cão esteve prestes a atirar-se em cima dele, em obediência a uma palavra de ordem que ouvira de madrugada, em meio ao estalar dos látegos, naquele lugar em que guar­davam os tachos e as cadeirinhas de junco. Mas lá no alto. não se sabia onde, continuava a peleja dos machos. Ao lado do chimarrão havia ossos roídos de costela. Cão aproximou- se lentamente, com as orelhas desconfiadas, disposto a arrebatar às formigas qualquer coisa que tivesse gosto de carne. Aqueles outros cães, com seus latidos tão ferozes, deixavam- no assustado. Por enquanto, o melhor era permanecer ao lado do homem. E ficar de ouvido atento. Contudo, o vento sul acabou por dissipar a ameaça. Cão deu três voltas em tomo de si mesmo e, cansado, enovelou-se. Suas patas correram um sonho ruim. De madrugada Chimarrão passou um braço por cima dele, num gesto de quem já havia dormido muitas vezes com mulheres. Cão aconchegou-se em seu peito, procurando calor. Ambos continuavam em plena fuga, com os nervos esticados pelo mesmo pesadelo.
Uma aranha, que havia descido para observar melhor, recolheu o fio e sumiu na copa do almendro, cujas folhas começavam a sair da noite.

II
Movidos pelo hábito, Cão e Chimarrão acordaram com o sino do engenho. A descoberta de que haviam dormido juntos, corpo tocando corpo, fez com que se erguessem de um salto. Protegeram-se por um tempo atrás de troncos, e depois olharam-se demoradamente. Cão se candidatando a um novo dono. O negro ansioso por recuperar alguma amizade. O vale espreguiçava-se. Ao opressivo repique destinado a acordar os escravos, respondia agora, mais lento, o toque grave e nobre da capela, cujo limo ia passando da sombra para o sol sobre um fundo de mugidos e relinchos, que eram como avisos indulgentes aos que dormiam nos altos leitos de mogno. Os galos rondavam as galinhas, para cobri-las logo cedo, e elas esperavam que o dedo da encarregada do galinheiro certificasse a existência de ovos ainda por botar. Um pavão real pavoneava-se no telhado da vivenda, inflamando-se, com um grito, a cada volta e contravolta que dava. Os escravos rezavam diante das cestas cheias de pão com garapa. Chimarrão abriu a braguilha, deixando um lago de espuma entre as raízes de uma ceiba. Cão ergueu a pata sobre uma goiabeirinha bem tenra. Os facões começavam a cortar a cana. Os dogues da matilha encarregada de caçar negros sacudiam as cadeias, impacientes por sair ao trabalho.
Chimarrão perguntou: "Vais comigo?"
Cão seguiu-o docilmente. Lá embaixo havia chicotes demais, correntes demais para aqueles que voltavam arrependidos. Não cheirava mais a fêmea. Agora, Cão estava muito mais atento ao cheiro de branco, cheiro de perigo. Pois o capataz cheirava a branco, apesar de suas camisas engomadas com amido e da graxa acre em suas botas de pele de porco. O seu cheiro era o mesmo das senhoritas da casa, apesar do perfume que se desprendia de suas roupas. O mesmo cheiro do padre, apesar da vela derretida e do incenso, que tornavam tão desagradável a sombra fresca da capela. O mesmo cheiro que o organista exalava lá do alto, embora os foles do harmónio soprassem sobre tantos feltros roídos pelas traças. Tinha, agora, que fugir do cheiro de branco. Cão havia mudado de bando.

III
Nos primeiros dias, Cão e Chimarrão ainda se lembravam de como seu alimento era seguro. Cão recordava-se dos ossos que no fim da tarde eram levados para o lixo em caixotes. Chimarrão sonhava com o peixe que era levado em caixotes para os barracões, após o chamado para a reza ou depois que silenciavam os tambores do domingo. Por isso, depois de um período em que, na ausência de sinos e pontapés, dormiram muitíssimo de manhã, os dois mudaram de hábito e passaram a sair para a caça logo ao alvorecer. Cão farejava uma cutia escondida pela ramagem de algum cedro; Chimarrão abatia-a a pedradas. No dia em que se deparavam com o rastro de um porco selvagem, andavam horas e horas, até que o animal, orelhas rasgadas, atordoado por tantos latidos, mas ainda resistindo, era encurralado ao pé de alguma pedreira e derrubado a pauladas. Pouco a pouco, Cão e Chimarrão foram esquecendo aquela época em que se alimentavam com regularidade. Devoravam o que aparecesse, de uma vez, engolindo a maior quantidade possível, sabendo que amanhã podia chover e que a água vinda lá do alto correria entre as pedras para fertilizar o fundo do vale. Felizmente, Cão sabia comer frutas. Quando Chimarrão encontrava um mamoeiro ou uma mangueira, Cão também saía com o nariz pintado de amarelo ou de vermelho. Além disso, como sempre havia gostado muito de ovos, um ninho de codorniz compensava-o do inexplicável gosto do amo pelos lagostins de água doce encontrados a dormir na contracorrente de um riacho subterrâneo que emergia de uma boca de caracóis petrificados.
Viviam numa caverna bem escondida por uma cortina de fetos arborescentes. As estalactites choravam isocronamente, povoando as sombras frias com um ruído de relógios. Certo dia, Cão se pôs a procurar algo no pé de uma parede da caverna. Logo seus dentes extraíam do local um fêmur e algumas costelas, que de tão antigos já haviam perdido todo sabor, desfazendo-se em pó sobre a língua. Em seguida, levou um crânio humano a Chimarrão, que confeccionava um cinto com pele de serpente. Embora houvesse na caverna uns restos de cerâmica e raspadores de pedra que lhe poderiam ter sido úteis, Chimarrão, aterrorizado com a presença de mortos em sua casa, abandonou o local naquela mesma tarde, murmurando orações, indiferente à chuva. Os dois dormiram entre raízes e sementes, envolvidos pelo mesmo cheiro de cachorro molhado. Ao amanhecer, saíram à procura de uma caverna de teto mais baixo, na qual o homem teve de entrar de gatinhas. Mas ali não havia daqueles ossos que de nada serviam, a não ser para trazer emanações e aparições de coisas ruins.
Como fazia muito tempo que não havia batidas, ambos começaram a aventurar-se em direção à estrada. Às vezes passava um carreteiro conhecido, uma beata vestida com o hábito do Nazareno, ou um tocador de guitarra, daqueles que conheciam o dono de cada povoado; mas limitavam-se a observá-los de longe, em silêncio. Era claro que Chimarrão esperava por alguma coisa. Permanecia horas de bruços nas touças de capim-guiné, de olho naquele caminho pouco mo­vimentado, que um sapo de bom tamanho podia cruzar com um único salto. Nessas longas esperas, Cão matava o tempo dispersando enxames de pequenas borboletas brancas, ou tentando, aos saltos, a impossível caça de um zunzum vestido de lantejoulas.
Certo dia, quando Chimarrão estava à espera de algo que não chegava, um ruído de cascos o fez levantar-se de repente. Uma carruagem aproximava-se a trote largo, puxada pela égua tordilha do engenho. De pé sobre os varais, o co­cheiro Gregório estalava o chicote, enquanto o pároco, atrás dele, agitava a campainha do viático. Havia muito tempo Cão não se divertia ganhando corrida com os cavalos, e por isso imediatamente esqueceu-se da obrigação de ser cauteloso. Desceu a encosta a toda pressa, espigado, azulado de sol; alcançando o coche, colou-se aos jarretes da égua, correndo à esquerda, à direita, à frente, passando e voltando a passar por baixo do animal, mostrando os dentes ao cocheiro e ao sacerdote. A égua disparou, sacudindo os antolhos e mordendo o freio. De repente, um dos tirantes partiu-se e o carro desequilibrou-se. Como se fossem bonecos de palha, o pároco e o cocheiro foram atirados de cabeça contra um pontilhão de pedra. O barro tingiu-se de sangue.
Chimarrão acudiu correndo. Brandia uma vara, ameaçando Cão, e este já se dispunha a arrastar-se aos seus pés e pedir-lhe que o perdoasse. Mas o negro suspendeu o gesto, pensando que nem tudo era negativo naquela circunstância. Apoderou-se da estola e das roupas do cura, da jaqueta e das botas altas do cocheiro. Dos bolsos de ambos recolheu cinco duros. E havia ainda a campainha de prata. Os ladrões re­gressaram ao monte. Naquela noite, envolvido na sotaina, Chimarrão se permitiu sonhar com prazeres esquecidos. Lembrou-se dos candeeiros que, cheios de insetos mortos, ardiam até muito tarde da noite nas casas mais afastadas do povoado, lá onde duas vezes lhe tinham permitido receber o presente da festa de Reis e gastá-lo como melhor lhe pareces­se. Claro, havia imediatamente optado pelas mulheres.

IV
A primavera alcançou-os ao amanhecer. Cão despertou com uma tensão insuportável entre as patas traseiras e uma expressão de poucos amigos no olhar. Arfava sem sentir calor, deixando pender entre os caninos uma língua que lhe parecia coberta de pedacinhos de concha de algum tipo de molusco. Chimarrão falava sozinho. Ambos estavam de péssimo ânimo. Sem pensar em caça, saíram cedo para a estrada. Cão corria sem rumo, procurando em vão um cheiro para rastrear. Pelo simples prazer de destruir, matava insetos que sempre havia detestado, rasgava espigas com os dentes, arrancava arbustos que mal começavam a crescer. Sua exasperação chegou ao auge quando um sapo cuspiu-lhe nos olhos. Chimarrão esperava como nunca havia esperado.
Mas naquele dia ninguém passou pela estrada. Ao cair da noite, quando os primeiros morcegos começaram a voar como pedradas sobre o campo, Chimarrão tomou lentamente o caminho do engenho. Cão foi atrás, ele também desafiando o chicote e a corrente. Seguindo o vale estreito, chegaram bem perto dos galpões. Sentiram o cheiro, outrora familiar, de lenha queimando, do melado apurando, de cascos de cavalo sendo limados. Decerto faziam doce de goiaba, pois o vento terral espalhava uma interminável doçura de compotas. Cão e Chimarrão continuavam a aproximar-se, um ao lado do outro, a cabeça do homem nivelada pela cabeça do cão.
De repente uma negra do serviço doméstico apareceu no caminho que levava à ferraria. Chimarrão avançou para ela, derrubando-a em cima das alfavacas. Sua mãozorra abafou os gritos da negra. Cão foi sozinho até os limites do grande pátio. Era lá que estava a cadela inglesa, adquirida por Dom Marcial numa exposição em Paris. Ela tentou fuga. Cão cortou o caminho da cadela. Estava eriçado da cabeça à ponta da cauda. Por ser tão envolvente o seu cheiro de macho, a cadela inglesa esqueceu-se de que algumas horas antes lhe haviam dado banho com sabão do reino.
O dia clareava quando Cão regressou à caverna. Chimarrão dormia, envolvido na sotaina do pároco. Lá embaixo, no rio, dois manatis brincavam entre os juncos, turvando a correnteza com saltos que abriam nuvens de espuma sobre o barro.

V
Chimarrão se tornava cada vez mais imprudente. Já não escolhia hora para rondar as casas do povoado, à espreita de uma lavadeira que saísse desacompanhada, ou de uma descuidada macumbeira à procura de avenca, giesta e pitahaya para algum trabalho. E desde aquela noite em que havia tido a audácia de parar num boteco à beira da estrada a fim de beber os dois duros do capelão, vivia ávido por moedas. Várias vezes tinha emboscado fazendeiros brancos a fim de apoderar-se de suas bolsas, depois de derrubá-los da sela e silenciá-los com uma estaca. Cão acompanhava-o nessas aventuras, ajudando na medida do possível. Enquanto isso, os dois iam comendo cada vez mais mal, e frequentemente Cão tinha de arranjar-se com ovos de codornas, garças e galinholas. Mas o pior era que Chimarrão vivia em constante sobressalto. Ao menor latido, apanhava o facão e escondia-se na copa de uma árvore.
Passada a crise da primavera, Cão se mostrava cada vez menos disposto a aproximar-se dos povoados. Havia meninos demais para atirar pedras, gente sempre disposta a dar pontapés, e, ao farejar sua presença nas imediações, todos os cães do engenho começavam a lançar os seus gritos de guerra. Além disso, Chimarrão tinha dado ultimamente para voltar à noite com passos inseguros, e de sua boca vinha um cheiro que Cão detestava tanto quanto o do tabaco. Por isso, quando o amo entrava em uma casa mal iluminada, Cão esperava-o a uma distância segura. Assim foram vivendo, até que certa noite Chimarrão demorou demais no quarto de uma vendedora de miúdos. De repente a choça foi cercada por homens armados e silenciosos. Momentos depois, Chimarrão era levado para a rua, nu, gritando a plenos pulmões. Cão, que acabava de sentir o cheiro do capataz do engenho, voltou correndo para o monte, seguindo uma vereda por dentro do canavial.
No dia seguinte viu Chimarrão passar pela estrada. Estava coberto de feridas tratadas com sal. Tinha ferros no pescoço e nos tornozelos, e era escoltado por quatro membros da Benemérita de San Fernando, que lhe davam uma porretada a cada dois passos, chamando-o de ladrão, bêbado e filho da mãe.

VI
Sentado em uma plataforma rochosa da qual se via o vale inteiro, Cão uivava para a lua. Às vezes uma profunda tristeza apoderava-se dele, em geral quando aquele grande e frio sol alcançava o máximo de sua redondez, pondo esvaecidos reflexos nas plantas. Para ele havia terminado o tempo das fogueiras que iluminavam a caverna em noites de chuva. Não contaria mais com o calor do homem no inverno que se aproximava, e também não teria quem lhe tirasse a coleira com garras de cobre, tão desconfortável na hora de dormir. Tinha herdado a sotaina do pároco, mas isso era tudo. Graças à necessidade de caçar o tempo inteiro, tornara-se mais tolerante em relação aos viventes que não serviam para ser comidos. Deixava a majá escapar por entre as pedras aquecidas, sem dar sequer um latido; afinal, Chimarrão já não estava ali para o açular, na esperança de ter um cinturão ou gordura para untar. Aliás, cheiro de cobra o enjoava; as vezes em que agarrara alguma pela cauda, fora apenas para cumprir uma dessas obrigações a que se vê constrangido quem quer que dependa de alguém. Tampouco, salvo em caso de fome extrema, atacava porcos do mato. Contentava-se, agora, com aves aquáticas, furões, uma ou outra galinha desgarrada dos gali­nheiros das aldeias. Mas, apesar de tudo, o engenho estava esquecido. Seu sino já nada lhe dizia. Cão buscava agora a segurança de morros íngremes, quase inacessíveis ao homem, vivendo em um mundo de dragoeiros que o vento sacudia produzindo rangidos de sela nova, mundo de orquídeas e bejucos rasteiros, lugar em que se arrastavam lagartos verdes de orelhas brancas, daqueles que parecem pouco perceber do que se passa ao redor e por isso ficam parados onde estão. Tinha enfraquecido. Em suas costelas salientes a lua colhia frutos de guisasos que já haviam perdido os espinhos.
A primavera voltou com os aguinaldos. Numa certa tarde em que experimentava grande desassossego, Cão encontrou-se novamente com aquele misterioso cheiro de fêmea, forte e penetrante, motivo principal de sua fuga para o monte. Da montanha também vinham latidos. Desta vez, Cão seguiu firmemente a trilha do cheiro, perdendo-a ao cruzar um riacho a nado e logo em seguida recobrando-a. Não tinha mais medo. Caminhou a noite inteira, com o nariz colado no chão, babando pelo canto da língua. Ao amanhecer, o cheiro espalhava-se por uma quebrada inteira. O rasteado viu-se, então, diante de um bando de selvagens. Vários machos, com cara de lobo, ali se amontoavam confusamente, olhos esbraseados, pernas tensas, prontos para atacar. Atrás deles, o cheiro denso de fêmea.
Cão deu um grande salto. Os selvagens caíram-lhe em cima. Corpos caíam sobre corpos, e havia um confuso redemoinho de latidos. Logo ressoaram ganidos de dor provocados pelas garras da coleira. Bocas enchiam-se de sangue. Orelhas eram rasgadas. Quando Cão soltou a garganta despedaçada do mais velho, os outros recuaram, grunhindo com raiva inútil. Cão correu então para o centro da clareira, a fim de travar o último combate, agora com a cadela cinzenta, de pelo duro, que o esperava com os dentes de fora. A trilha de cheiro terminava na sombra de seu ventre.

VII
 Os selvagens caçavam em bandadas. Preferiam, por isso, os animais de porte, com maior volume de carne e de ossos. Quando descobriam um veado, tinham trabalho para vários dias. Primeiro, a perseguição. Depois, quando o animal se deixava encurralar em algum barranco, vinha o ataque. E se a presa conseguia refugiar-se em uma caverna, o cerco. Embora às vezes ferisse ou entortasse algum dos atacantes, o animal sempre acabava entre os dentes da matilha, que dava início ao festim com o corpo ainda vivo, arrancando tiras de couro cinza e bebendo sangue fresco que saía ainda morno das artérias do pescoço ou das que passavam pela raiz de uma orelha arrancada. Entre os selvagens, vários já haviam perdido um olho, arrancado a ponta de chifre, e todos estavam cobertos de cicatrizes, chagas e pisaduras vermelhas. Nos dias de cio os cães brigavam entre si, enquanto as fêmeas esperavam deitadas, com surpreendente indiferença, o resul­tado da luta. O sino do engenho, cujas badaladas às vezes eram trazidas pela brisa, não despertava a menor lembrança no Cão.
Certo dia os selvagens apanharam uma trilha habitual naquelas matas de bejucos, espinheiros e plantas que envenenam ao arranhar. Havia cheiro de negro. Cautelosamente os cães avançaram pelo desfiladeiro dos caracóis, onde erguia-se uma velha pedra com cara de morto. Os homens costumam deixar ossos e inutilidades por onde passam. Mas é melhor prestar atenção neles, são os mais perigosos entre todos os animais, pois o fato de andar sobre as patas traseiras lhes permite encompridar os gestos com pedaços de pau e determinados objetos. A matilha parou de ladrar.
De repente o homem apareceu. Tinha cheiro de negro. Seus passos eram ritmados por correntes partidas que lhes pendiam dos pulsos. Outros elos, mais grossos, soavam em baixo dos farrapos da calça de riscado. Cão reconheceu Chimarrão.
"Cão!", o negro exclamou com alvoroço. "Cão!"
Cão aproximou-se lentamente. Cheirou-lhe os pés, não permitindo porém que ele o tocasse. Deu voltas ao redor dele, balançando a cauda. Quando o homem o chamava, fugia. E quando não era chamado, parecia ficar à procura daquele som da voz humana, que em outras épocas havia entendido um pouco, mas que agora soava muito estranho, algo que lhe fazia lembrar perigosas obediências. Por fim, Chimarrão deu um passo e procurou afagar-lhe a cabeça. Cão soltou um grito esquisito, mistura de latido rouco e de ganido, e saltou no pescoço do negro.
Cão lembrara-se, de repente, de uma antiga ordem que o capataz do engenho lhe tinha dado no dia em que um escravo estava fugindo para a montanha.

VIII
Como o tempo estava agradável e não havia cheiro de fêmea no ar, os selvagens dormiram fartos durante dois dias. Lá no alto, acima das ramagens, as auras voavam em círculo, esperando que a matilha fosse embora sem terminar o trabalho. Cão e a cadela cinzenta divertiam-se como nunca, brincando com a camisa listrada de Chimarrão. Cada um puxava mais forte, a fim de provar a solidez de suas presas. Quando uma costura se abria, ambos rolavam no chão. Mas logo recomeçavam, o farrapo cada vez menor, olhando-se no olhos, focinhos quase tocando-se. Por fim deu-se a ordem de partir. Os latidos perderam-se nos picos cobertos pelo arvoredo.

Durante muitos anos os monteiros evitaram usar à noite aquele atalho assombrado por ossos e correntes.

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