sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

27 – Feliz ano novo – R. Fonseca

Jose Rubem Fonseca nasceu em Juiz de Fora em 1925 e escreveu este conto em 1975. Pelo tema, pela linguagem direta e pela força das imagens, “Feliz ano novo” é um dos contos mais contundentes já escritos em nossa língua. Uma leitura obrigatória.

Feliz Ano Novo
Rubem Fonseca

Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no réveillon. Vi também que as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque.

“Pereba, vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos macumbeiros.”
Pereba entrou no banheiro e disse, “que fedor.”

“Vai mijar noutro lugar, tô sem água.”

Pereba saiu e foi mijar na escada.

“Onde você afanou a TV?”, Pereba perguntou.

“Afanei porra nenhuma. Comprei. O recibo está bem em cima dela.”
“Ô
Pereba! você pensa que eu sou algum babaquara para ter coisa estarrada no meu cafofo?”
“Tô morrendo de fome,” disse Pereba.
“De manhã a gente enche a barriga com os despachos dos babalaôs,” eu disse, só de sacanagem.

“Não conte comigo,” disse Pereba. “Lembra do Crispim? Deu um bico 
numa macumba aqui na Borges de Medeiros, a perna ficou preta, cortaram no Miguel Couto e tá ele aí, fudidão, andando de muleta.”
Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever 
e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que quiser.

Acendemos uns baseados e ficamos vendo a novela. Merda. Mudamos 
de canal, prum bangue-bangue. Outra bosta.

“As madames granfas tão todas de roupa nova, vão entrar o ano novo 
dançando com os braços pro alto, já viu como as branquelas dançam?
Levantam os braços pro alto, acho que é pra mostrar o sovaco, elas querem 
mesmo é mostrar a boceta mas não têm culhão e mostram o sovaco. Todas
 corneiam os maridos. Você sabia que a vida delas é dar a xoxota por aí?”

“Pena que não tão dando pra gente,” disse Pereba.
Ele falava devagar,
 gozador, cansado, doente.

“Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as
madames vão dar pra você? O Pereba, o máximo que você pode fazer é tocar 
uma punheta. Fecha os olhos e manda brasa.”

“Eu queria ser rico, sair da merda em que estava metido! Tanta gente 
rica e eu fudido.”

Zequinha entrou na sala, viu Pereba tocando punheta e disse, “que é isso
Pereba?”

“Michou, michou, assim não é possível,” disse Pereba.

“Por que você não foi para o banheiro descascar sua bronha?”, disse 
Zequinha.

“No banheiro tá um fedor danado,” disse Pereba.

“Tô sem água.”

“As mulheres aqui do conjunto não estão mais dando?”, perguntou 
Zequinha.

Ele tava homenageando uma loura bacana, de vestido de baile e cheia
 de jóias.

“Ela tava nua,” disse Pereba.

“Já vi que vocês tão na merda,” disse Zequinha.

“Ele tá querendo comer restos de Iemanjá,” disse Pereba.

“Brincadeira,” eu disse.
Afinal, eu e Zequinha tínhamos assaltado um 
supermercado no Leblon, não tinha dado muita grana, mas passamos um 
tempão em São Paulo na boca do lixo, bebendo e comendo as mulheres. A
gente se respeitava.

“Pra falar a verdade a maré também não tá boa pro meu lado, disse
Zequinha. A barra tá pesada. Os homens não tão brincando, viu o que 
fizeram com o Bom Crioulo? Dezesseis tiros no quengo. Pegaram o Vevé e estrangularam. O Minhoca, porra! O Minhoca! crescemos juntos em Caxias,
o cara era tão míope que não enxergava daqui até ali, e também era meio 
gago - pegaram ele e jogaram dentro do Guandu, todo arrebentado.”

“Pior foi com o Tripé. Tacaram fogo nele. Virou torresmo. Os homens 
não tão dando sopa,” disse Pereba. “E frango de macumba eu não como.
Depois de amanhã vocês vão ver.”

“Vão ver o quê?”, perguntou Zequinha.

“Só tô esperando o Lambreta chegar de São Paulo.”

“Porra, tu tá transando com o Lambreta?”, disse Zequinha.

“As ferramentas dele estão todas aqui.”

“Aqui?”, disse Zequinha.
“Você tá louco.”

Eu ri.

“Quais são os ferros que você tem?”, perguntou Zequinha.

“Uma Thompson lata de goiabada, uma carabina doze, de cano serrado, e duas Magnum.”
“Puta que pariu,” disse Zequinha. “E vocês montados nessa baba tão aqui
tocando punheta?”

“Esperando o dia raiar para comer farofa de macumba,” disse Pereba.
Ele faria sucesso falando daquele jeito na TV, ia matar as pessoas de rir.
Fumamos. Esvaziamos uma pitu.

“Posso ver o material?”, disse Zequinha.

Descemos pelas escadas, o elevador não funcionava, e fomos no apartamento de dona Candinha. Batemos. A velha abriu a porta.
“Dona Candinha, boa noite, vim apanhar aquele pacote.”
“O Lambreta já chegou?”, disse a preta velha.

“Já,” eu disse, “está lá em cima.”

A velha trouxe o pacote, caminhando com esforço. O peso era demais para ela.
“Cuidado, meus filhos,” ela disse.
Subimos pelas escadas e voltamos para o meu apartamento. Abri o
 pacote. Armei primeiro a lata de goiabada e dei pro Zequinha segurar.
“Me 
amarro nessa máquina, tarratátátátá!”, disse Zequinha.

“É antigo mas não falha,” eu disse.

Zequinha pegou a Magnum.
“Joia, joia,” ele disse. Depois segurou a doze,
colocou a culatra no ombro e disse: “ainda dou um tiro com esta belezinha 
nos peitos de um tira, bem de perto, sabe como é, pra jogar o puto de costas 
na parede e deixar ele pregado lá.”

Botamos tudo em cima da mesa e ficamos olhando.

Fumamos mais um pouco.

“Quando é que vocês vão usar o material?”, disse Zequinha.

“Dia 2. Vamos estourar um banco na Penha. O Lambreta quer fazer o
 primeiro gol do ano.”

“Ele é um cara vaidoso, disse Zequinha.
É vaidoso mas merece. Já trabalhou em São Paulo, Curitiba, Florianópolis,
 Porto Alegre, Vitória, Niterói, para não falar aqui no Rio. Mais de 
trinta bancos.”
“Mas dizem que ele dá o bozó,” disse Zequinha.

“Não sei se dá, nem tenho peito de perguntar. Pra cima de mim nunca 
veio com frescuras.”

“Você já viu ele com mulher?”, disse Zequinha.

“Não, nunca vi. Sei lá, pode ser verdade, mas que importa?”

“Homem não deve dar o cu. Ainda mais um cara importante como o 
Lambreta,” disse Zequinha.

“Cara importante faz o que quer,” eu disse.

“É verdade,” disse Zequinha.

Ficamos calados, fumando.

“Os ferros na mão e a gente nada,” disse Zequinha.

“O material é do Lambreta. E aonde é que a gente ia usar ele numa hora
destas?”
Zequinha chupou ar, fingindo que tinha coisas entre os dentes. Acho 
que ele também estava com fome.

“Eu tava pensando a gente invadir uma casa bacana que tá dando festa. 
O mulherio tá cheio de joia e eu tenho um cara que compra tudo o que eu 
levar. E os barbados tão cheios de grana na carteira. Você sabe que tem anel 
que vale cinco milhas e colar de quinze, nesse intruja que eu conheço? Ele 
paga na hora.”

O fumo acabou. A cachaça também. Começou a chover.

“Lá se foi a tua farofa,” disse Pereba.

“Que casa? Você tem alguma em vista?”

“Não, mas tá cheio de casa de rico por aí. A gente puxa um carro e sai
procurando.”

Coloquei a lata de goiabada numa saca de feira, junto com a munição. Dei uma Magnum pro Pereba, outra pro Zequinha. Prendi a carabina no 
cinto, o cano pra baixo, e vesti uma capa. Apanhei três meias de mulher e uma tesoura. Vamos, eu disse.

Puxamos um Opala. Seguimos para os lados de São Conrado. Passamos várias casas que não davam pé, ou tavam muito perto da rua ou tinham gente demais. Até que achamos o lugar perfeito. Tinha na frente um jardim grande
 e a casa ficava lá no fundo, isolada. A gente ouvia barulho de música de carnaval, mas poucas vozes cantando. Botamos as meias na cara. Cortei com a tesoura os buracos dos olhos. Entramos pela porta principal.

Eles estavam bebendo e dançando num salão quando viram a gente.

“É um assalto,” gritei bem alto, para abafar o som da vitrola. “Se vocês 
ficarem quietos ninguém se machuca. Você aí, apaga essa porra dessa vitrola!”
Pereba e Zequinha foram procurar os empregados e vieram com três 
garçons e duas cozinheiras.
Deita todo mundo, eu disse.

Contei. Eram vinte e cinco pessoas. Todos deitados em silêncio, 
quietos, como se não estivessem sendo vistos nem vendo nada.

“Tem mais alguém em casa?”, eu perguntei.

“Minha mãe. Ela está lá em cima no quarto. É uma senhora doente,” 
disse uma mulher toda enfeitada, de vestido longo vermelho. Devia ser a 
dona da casa.

“Crianças?”

“Estão em Cabo Frio,” com os tios.

“Gonçalves, vai lá em cima com a gordinha e traz a mãe dela.”

“Gonçalves?”, disse Pereba.

“É você mesmo. Tu não sabe mais o teu nome, ô burro?”

Pereba pegou a mulher e subiu as escadas.

“Inocêncio, amarra os barbados.”

Zequinha amarrou os caras usando cintos, fios de cortinas, fios de 
telefones, tudo que encontrou.

Revistamos os sujeitos. Muito pouca grana. Os putos estavam cheios
 de cartões de crédito e talões de cheques. Os relógios eram bons, de ouro e platina. Arrancamos as joias das mulheres. Um bocado de ouro e brilhante. Botamos tudo na saca.

Pereba desceu as escadas sozinho.

“Cadê as mulheres?”, eu disse.

“Engrossaram e eu tive que botar respeito.”

Subi. A gordinha estava na cama, as roupas rasgadas, a língua de fora. Mortinha. Pra que ficou de flozô e não deu logo? O Pereba tava atrasado. Além de fudida, mal paga. Limpei as joias.
A velha tava no corredor, caída
 no chão. Também tinha batido as botas. Toda penteada, aquele cabelão armado, pintado de louro, de roupa nova, rosto encarquilhado, esperando o ano novo, mas já tava mais pra lá do que pra cá. Acho que morreu de susto.
Arranquei os colares, broches e anéis. Tinha um anel que não saía. Com 
nojo, molhei de saliva o dedo da velha, mas mesmo assim o anel não saía. Fiquei puto e dei uma dentada, arrancando o dedo dela. Enfiei tudo dentro
 de uma fronha.
O quarto da gordinha tinha as paredes forradas de couro. A banheira era um buraco quadrado grande de mármore branco, enfiado no chão. A parede toda de espelhos. Tudo perfumado.
Voltei para o quarto, empurrei a gordinha para o chão, arrumei a colcha de cetim da cama com cuidado, ela ficou lisinha, brilhando. Tirei as calças e caguei em cima da colcha. Foi um alívio, muito legal. Depois limpei o cu na colcha, botei as
calças e desci.

“Vamos comer,” eu disse, botando a fronha dentro da saca.

Os homens e mulheres no chão estavam todos quietos e encagaçados,
como carneirinhos. Para assustar ainda mais eu disse, o puto que se mexer eu estouro os miolos.
Então, de repente, um deles disse, calmamente, “não se irritem, levem o que quiserem, não faremos nada.”

Fiquei olhando para ele. Usava um lenço de seda colorida em volta do
pescoço.
“Pode também comer e beber à vontade,” ele disse.

Filha da puta. As bebidas, as comidas, as joias, o dinheiro, tudo aquilo 
para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles, nós não passávamos de três moscas no açucareiro.

“Como é seu nome?”
“Maurício,” ele disse.

“Seu Maurício, o senhor quer se levantar, por favor?”

Ele se levantou. Desamarrei os braços dele.

“Muito obrigado,” ele disse. “Vê-se que o senhor é um homem educado, instruído. Os senhores podem ir embora, que não daremos queixa à polícia.”
Ele disse isso olhando para os outros, que estavam quietos apavorados no chão, e fazendo um gesto com as mãos abertas, como quem diz, calma minha gente, já levei este bunda suja no papo.

“Inocêncio, você já acabou de comer? Me traz uma perna de peru dessas 
ai.” Em cima de uma mesa tinha comida que dava para alimentar o presídio inteiro. Comi a perna de peru. Apanhei a carabina doze e carreguei os dois canos.

“Seu Maurício, quer fazer o favor de chegar perto da parede?”
 Ele se encostou na parede.
”Encostado não, não, uns dois metros de distância. Mais um pouquinho
para cá. Muito obrigado.”

Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele
 tremendo trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele tinha um buraco que dava para colocar um panetone.

“Viu, não grudou o cara na parede, porra nenhuma.”

“Tem que ser na madeira, numa porta. Parede não dá,” Zequinha disse.

Os caras deitados no chão estavam de olhos fechados, nem se mexiam. 
Não se ouvia nada, a não ser os arrotos do Pereba.

“Você aí, levante-se,” disse Zequinha.
O sacana tinha escolhido um cara magrinho, de cabelos compridos.

“Por favor,” o sujeito disse, bem baixinho.

“Fica de costas para a parede,” disse Zequinha.

Carreguei os dois canos da doze.
“Atira você, o coice dela machucou o 
meu ombro. Apoia bem a culatra senão ela te quebra a clavícula.
Vê como esse vai grudar.”
Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram 
do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o corpo do cara ficou preso pelo chumbo grosso na madeira.

“Eu não disse?”, Zequinha esfregou o ombro dolorido. “Esse canhão é
 foda.”

“Não vais comer uma bacana destas?”, perguntou Pereba.

“Não estou a fim. Tenho nojo dessas mulheres. Tô cagando pra elas. Só
 como mulher que eu gosto.”

“E você... Inocêncio?”

“Acho que vou papar aquela moreninha.”

A garota tentou atrapalhar, mas Zequinha deu uns murros nos cornos 
dela, ela sossegou e ficou quieta, de olhos abertos, olhando para o teto, enquanto era executada no sofá.

“Vamos embora,” eu disse. Enchemos toalhas e fronhas com comidas e objetos.
“Muito obrigado pela cooperação de todos,” eu disse.
Ninguém respondeu.

Saímos. Entramos no Opala e voltamos para casa.

Disse para o Pereba, larga o rodante numa rua deserta de Botafogo, pega um táxi e volta.
Eu e Zequinha saltamos.

“Este edifício está mesmo fudido, disse Zequinha, enquanto subíamos, 
com o material, pelas escadas imundas e arrebentadas.”

“Fudido mas é Zona Sul, perto da praia. Tás querendo que eu vá morar 
em Nilópolis?”

Chegamos lá em cima cansados. Botei as ferramentas no pacote, as joias 
e o dinheiro na saca e levei para o apartamento da preta velha.

“Dona Candinha,” eu disse, mostrando a saca, é coisa quente.

“Pode deixar, meus filhos. Os homens aqui não vêm.”

Subimos. Coloquei as garrafas e as comidas em cima de uma toalha no 
chão. Zequinha quis beber e eu não deixei. Vamos esperar o Pereba.


Quando o Pereba chegou, eu enchi os copos e disse, “que o próximo 
ano seja melhor. Feliz ano novo.”

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

26 – O peru de Natal – M. de Andrade

Neste conto, Mario de Andrade (1893-1945), escritor paulista, que revolucionou e liderou a modernização da literatura brasileira, propõem uma revolução ainda mais ampla: a revolução dentro da própria família.

O peru de Natal
Mário de Andrade

O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de consequências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza 
cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, duma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma 
estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um
 bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres.

Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória 
obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação 
de uma lembrança dolorosa em cada gesto mínimo da família. Uma vez que
 eu sugerira à mamãe a ideia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou 
foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava 
sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.

Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a ideia
 de fazer uma das minhas chamadas "loucuras". Essa fora aliás, e desde muito
 cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde 
cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma
reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos 
dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente
desde as lições que dei ou recebi, não sei, duma criada de parentes: eu
 consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória 
de "louco". "É doido, coitado!" falavam. Meus pais falavam com certa
tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os 
filhos e provavelmente com aquele prazer dos que convencem de alguma
 superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, 
essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se
 realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido,
 coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me
 queixar um nada.

Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se
 imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por
 causa dos quebra-nozes...), empanturrados de castanhas e monotonias, a
gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma 
das minhas "loucuras

– Bom, no Natal, quero comer peru.

Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia
 solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar
 ninguém por causa do luto.

– Mas quem falou de convidar ninguém! Essa mania... Quando é que
a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem 
toda essa parentada do diabo...

– Meu filho, não fale assim...

– Pois falo, pronto!

E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita,
diz-que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o 
momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a 
ocasião. Me deu de supetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas 
duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a
vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa.
Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados 
pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos 
doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar,
trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a prensagem 
devorava tudo e inda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir.

As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos 
ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia inda provavam um naco de 
perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem
 servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato
o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.

Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas.
E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha,
com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em
 que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como
 aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti
 onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele
 ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus "gostos", já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja.
Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos,
 num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que 
sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que 
estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de
mim a... culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como 
pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral:

– É louco mesmo!...

Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo
 bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado:
 assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não 
fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar
minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo 
violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha 
imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei 
muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento 
aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo
 àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase 
pobreza sem
 razão.
– Não senhora, corte inteiro! só eu como tudo isso!

Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em 
mim, que até era capaz de comer pouco, só pra que os outros quatro 
comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido 
a sós, redescobria em cada um o que a cotidianidade abafara por completo, 
amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando 
em Jesus... Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando 
um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente
 reduzido a fatias amplas.

– Eu que sirvo!

"É louco, mesmo!" pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira 
naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim 
e 
principiei uma distribuição heroica, enquanto mandava meu mano servir a
 cerveja. Tomei conta logo dum pedaço admirável da "casca", cheio de gordura 
e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou 
o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:

– Se lembre de seus manos, Juca! Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela,
 da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus 
crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou 
sublime.

– Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!

Foi quando ela não pôde mais com tanta comoção e principiou 
chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime 
seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu 
lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então 
principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove 
anos... Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos
 se 
esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que 
o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto.
Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal.
Fiquei danado.

Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava 
perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os 
sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e 
redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo 
petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco,
 incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão
 gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do
 Jesusinho nascido.

Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que 
gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente
o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas
 de vencer: nem bem gabei o peru a imagem de papai cresceu vitoriosa,
insuportavelmente obstruidora.

– Só falta seu pai...

Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que
me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem 
sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele 
instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente
o partido de meu pai. Fingi, triste:

– É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu 
de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente... (hesitei,
 mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos 
em família.

E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele 
foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora
 todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom,
 sempre se sacrificara por nós, fora um santo que "vocês, meus filhos, nunca
 poderão pagar o que devem a seu pai", um santo. Papai virara santo, uma 
contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava 
mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali
 era o peru, dominador, completamente vitorioso.

Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever
"felicidade gustativa", mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, 
um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do
 grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no
recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo,
 mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então 
uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim
 grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber.

Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia
 lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade!

A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor...

Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o
 nome de "bem-casados". Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à 
lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa,
 em culto puro de contemplação.

Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por 
duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco 
importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica
 antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder 
sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra 
ela,
modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!...