sexta-feira, 31 de outubro de 2014

19 – Quem escuta, ouve a seus males – J. M. Gorriti

Juana Manuela Gorriti (1818-1892), argentina nascida em Salta foi a primeira grande escritora latino-americana – para se ter ideia de seu pioneirismo basta dizer que nasceu 21 anos antes de Machado de Assis e teria portanto idade suficiente para ser tataravó de nossa Pagú– Aqui destaco um de seus mais importantes trabalhos e como não encontrei uma tradução de seus contos decidi eu mesmo traduzir “Quem escuta, ouve a seus males” para que vocês tenham a oportunidade de conhece-la. Tive também a ousadia de fazer alguns ajustes editoriais pois, ao longo do conto, ela vai alterando o narrador o que poderia dificultar sua compreensão.

Quem escuta, ouve a seus males
Juana Manuela Gorriti
– Quando erramos – disse um dia certo amigo – se reparar o erro é impossível, resta nos ao menos a possibilidade de expia-lo com uma confissão explicita e franca. Gostaria, minha amiga, de ser minha confessora.
– Oh, sim! – me apressei em responder.
– Confessora em plenas condições?
– Sim, excetuando uma.
– Qual?
– O segredo
– Oh! mulheres. Mulheres, não conseguem calar nem mesmo ao preço de vossa vida; mulheres que professam um verdadeiro culto pela conversa sem compromissos: mulheres que... Mulheres que temos de aceitar como elas são.
– Acuso-me pois – começou ele já resignado a minha indiscreta restrição – acuso-me de uma falta grave, enorme, e me arrependo até onde pode se arrepender alguém curioso, por ter satisfeito sua devoradora paixão.
I
Eu conspirava, em um tempo não muito distante, e, denunciado por agentes do governo, fui obrigado a esconder-me. Um amigo me deu asilo, obviamente, que no lugar mais recôndito de sua casa. Era um quarto, ao final do jardim, cuja porta se escondia completamente detrás dos ramos de uma videira. Suas paredes, forradas de um carmesim damasco, davam uma impressão bem antiga. Tinha sido o quarto do avô da casa, cujo imenso leito dourado, vazio por sua morte, ocupava eu... mas de uma forma bem distinta! O ancião cavalheiro, dormia – imaginava eu – um sonho bem-aventurado por trás das espessas cortinas de veludo verde, agitadas agora pela tenaz insônia que circulava por meu sangue de conspirador e de algo mais: de curioso. Mas julgue por si mesma.
Desde minha primeira noite, naquele quarto, escutava, sem que me fosse possível determinar de onde, uma voz. Uma suave e bela voz de mulher que falava, mesclando-se com vozes de homens; e depois, parecendo estar sozinha, lia prosa e versos como os teria declamado Raquel e cantava como Malíbran os trechos mais sublimes do repertorio moderno, entre eles uma serenata de Schubert cujas notas graves tinham uma melodia celestial.  
Passei vários dias intrigado, auscultando entre as molduras douradas que sustentavam a tapeçaria, tateando as paredes e buscando por toda parte o lugar por onde penetrava o eco daquela voz.
Pareceu-me que ao me aproximar de um grande armário colocado em um dos cantos, ouvia mas clara e próxima a voz. No entanto aquele móvel era tão pesado que considerei inútil tentar move-lo sozinho; mas de nenhuma forma renunciei a ideia de conhecer o que ele escondia por detrás.
Assim, quando anoiteceu, o velho negro encarregado de servir-me em meu esconderijo trouxe-me o chá, coloquei em sua mão um dobrão e pedi que me ajudasse a mudar aquele armário de lugar.
Ao escutar-me, o negro abriu seus grandes olhos e empalideceu.
– Ai, não senhor – exclamou com voz surda – nem por todo ouro do mundo. A velha senhora ainda está viva; e se chegasse a saber que por ali passara a infidelidade de seu marido, seria capaz de adivinhar também que eu, ai Jesus, que fui eu quem abriu esta porta para que meu amo, pobre senhor, entrasse no mosteiro... Maria Santíssima! Não, não senhor. Ademais, o armário esta incrustrado na parede e é impossível move-lo.
Custou-me muito trabalho acalmar seu espanto e quando lhe prometi um profundo segredo, ele me contou que a casa vizinha, em outros tempos, fizera parte de um convento de feiras onde seu amo teve a temeridade de amar a uma esposa do Senhor e ainda não contente com a enormidade de seu crime, profanara a casa de Deus com o auxilio de seu escravo marceneiro e carpinteiro, abrindo na parede uma passagem que dava para o interior do armário.
 – Assim é, senhor – concluiu o negro – que desde que meu amo morreu, este armário é meu pesadelo. Sempre temendo que tire o diabo da manta; sempre temendo de que uma reforma da casa revele esta passagem e o nome de seu artífice, pois a senhora sem duvida me assaria vivo.
– Não tema Juan – disse para tranquiliza-lo – Quem contaria? Eu permanecerei calado como a morte; e quando partir, o segredo desaparecerá para sempre comigo.
– Ai senhor! – insistiu o negro cedendo, apesar de continuar falando – que tempos aqueles! O amor de meu senhor durou por toda a vida da freirinha, que por outro lado, não foi longa. A pobre pombinha (assim a chamava meu amo e assim chamavam, naqueles tempos, os galãs à suas amadas), a pombinha cativa amava demais e seu amor não podendo respirar mais a mefítica atmosfera do claustro, levou sua alma para outros lugares. Meu amo esteve ao inicio incontrolável, mas depois, fez o que todos fazem, esqueceu sua pombinha e partiu para a casa de outras que também amou, mas em cujos amores já não interviu seu escravo.
– Juan – disse eu, interrompendo suas confidencias – recorde que tens de ajudar-me e partir em seguida.
Então o antigo Mercúrio do sedutor de freiras, como se tivesse entendido bem, abriu o armário; e tirando a madeira do fundo, deixou a descoberto uma entrada fechada por um postigo, do outro lado da parede.
O negro me mostrou o trinco que o abria e fugiu dali aterrorizado.
Ao encontrar-me outra vez sozinho e dono daquela misteriosa porta, meu coração bateu com violência, não sei se de prazer ou de medo. Tinha já na mão a ponta do véu que tanto desejava levantar.
Mas como faze-lo. Com que direito ia eu me meter na vida íntima da pessoa que dormia, confiante, a poucos passos de mim. Com a mão no ferrolho e o ouvido atento, hesitei por alguns segundos entre a curiosidade e a discrição.
De repente, ouvi no quarto vizinho o roçar de um vestido e a mesma voz murmurando.
– Dois meses sem noticias! O ingrato partiu sem nem mesmo me dar adeus. Onde está ele agora? Na sua fria indiferença não lhe pareceu necessário dizer o lugar onde meu amor poderia busca-lo, mas descobrirei. Esta ciência, cujo poder negam os homens sem fé, e ele como um deles, esta ciência me dirá. Sim, eu o quero – continuou em tom enérgico. Fechou-se a porta e tudo ficou em silencio.
Como enfrentar a irresistível curiosidade que se apoderou de mim ao ouvir a expressão daquele amor único, revelado naquelas misteriosas palavras? Nada mais poderia me deter; tudo mais se rendeu ante o desejo de tocar com as mãos os segredos daquela estranha existência. Com a cabeça encostada no postigo, esperei por um quarto de hora. O mesmo silencio: nada se movia ali. Então, afastando de mim todos os pensamentos que pudessem intimidar, empurrei decidido o ferrolho que me mostrara o negro.
O ferrolho, esquecido durante meio século, me assustou com um agudo chiado, mas cedendo ao mesmo tempo, abriu uma entrada estreita, como a porta de uma carruagem e eu, dando um passo, me encontrei na casa de minha vizinha.
II – A alcova de uma excêntrica
A pálida luz de uma lamparina, alimentada com álcool de vinho e colocada sobre uma mesinha na cabeceira de um pequeno leito adornado com cortinas brancas, iluminava suavemente o quarto fechado e vazio. Ao pé da cama, e sobre o mármore de uma cômoda, havia uma pequena biblioteca, em que figuravam os nomes de Andral, Huffeland, Raspail e outros autores, entre dois crânios de estudo e gravados anatômicos, que teriam levado a acreditar que aquela habitação pertencia a um homem de ciência, se uma rápida olhada em torno não persuadira ao contrario; sobre uma cesta de costura, um arranjo de flores inacabado; mais ali um véu pendurado em uma coluna do tocador e mais adiante uma saia de gaze com cintas, jogada as pressas sobre uma almofada; flores colocadas com amor em vasos de vários tamanhos, o suave perfume de extratos ingleses, o fumo azulado do  incenso exalando de um queimador de argila, tudo ali revelava o sexo de sua dona.
 Na cabeceira da cama, ao pé de um quadro que representava ao menino Deus, estava o retrato de um belo jovem, e estas imagens, das duas idades em que tanto amor se prodiga ao homem, pareciam dominar naquela simples e pobre morada artística.
As paredes daquele quarto desapareciam completamente sob sombrias talhas de madeira esculpida; e a misteriosa passagem era um baixo relevo, cercado de uma coroa de rosas entalhada.
Encontrava-me pois na antiga câmera da freira: era um santuário de seus amores, templo agora de um amor não menos apaixonado. Havia nesta coincidência, motivo para que a imaginação se pusesse a voar rememorando cenas passadas, e ante os olhos imóveis das robustas estatuetas cariátides e os bochechudos querubins daquela vetusta escultura. Mas eu não tinha tempo a perder. Se já era um criminoso não queria sê-lo à meias e tinha decidido abrir uma fresta para que meus olhares pudessem penetrar a qualquer momento na morada da minha excêntrica vizinha.
Olhei, pois, em sua cesta de costura, que, diga-se de passagem, estava em uma espantosa desordem. Dedos nervosamente crispados haviam enredado os pedaços de seda ao arrancar, ao invés de cortar as pontas; e mais de dez agulhas, que se misturavam entre rendas e fitas, me picaram os dedos quando buscava o par de tesouras que finalmente encontrei, e com as quais fiz um orifício no centro de uma das rosas entalhadas no medalhão
Era já tempo; pois apenas fechei a porta e voltei ao meu quarto saindo do armário, meu hospedeiro entrou para me fazer a companhia de todas as noites.
Confesso que nunca a presença de um ser mais antipático me foi tão insuportável como a de meu amigo naquele momento. Sua conversa, tão interessante e animada, pois era um homem de talento e muitos conhecimentos, parecia-me cansativa e monótona. Meu mal estar cresceu quando senti que no quarto vizinho se abria uma porta. Sem duvida era ela, Sua misteriosa moradora. Teria cumprido o seu desígnio? Qual era a ciência de que falava e que lhe haviam revelado seus arcanos?
O silencio que se seguiu me parecia de mal agouro e eu cravado em uma poltrona, diante de meu amigo não podia averiguar! Consumia –me de ansiedade, e respondia a meu amigo com ar distraído, o que ele finalmente se deu conta.
– Sofres? – me perguntou.
– Não, de maneira nenhuma – me apressei em responder.
– Pareces preocupado. De qualquer forma é melhor que durmas.
– Até manhã!
– Até manhã! – respondi com uma euforia tão pronunciada que o surpreendi e ele se foi sorrindo.
Apenas me vi sozinho, corrí a entrar no armário e olhei pela fresta aberta pela ponta da tesoura.
Tudo continuava do mesmo jeito; mas o quarto agora não estava vazio. No centro, sentado em uma poltrona, um homem passeava seu olhar assombrado. Nada dizia aquela olhada e nada tampouco revelava a expressão de sua grande boca de lábios finos e pálidos. Apenas sua testa, larga e elevada teria preocupado muito a um observador frenólogo.
Abriu-se se de repente uma pequena porta coberta por uma cortina vermelha e no fundo escuro se desenhou a figura de uma mulher. Era alta e esbelta. Coberta por um largo roupão branco, cujas dobras ondulantes mantinham a meio laço um cinturão azul; com seus negros cabelos arrojados em cacheados que caiam sobre suas costas; com passo rápido e movimentos ligeiros que podiam passar a impressão de que era o ser mais feliz da terra; mas que, uma observação mais atenta poderia revelar as lagrimas por trás de seus sorriso.
Entrando no quarto, seus olhos pousaram nos olhos do homem  com uma expressão grave, fixa e profunda que o fez estremecer.  Rapidamente, os olhos do jovem, como que fascinados por aquele olhar, permaneceram cravados nela, enquanto uma estranha languidez foi caindo sobre eles até que as pálpebras se fecharam. Então aquela mulher, se aproximou e com passos lentos, mas seguros, passou três vezes sua mão direita sobre os olhos fechados do jovem baixando depois ao longo de seu rosto e desviando em seguida em direção ao ombro, para eleva-la de novo. Em seguida, alargando horizontalmente seu braço a esquerda na altura de seu peito, disse com um tom suave mas imperioso. 
– Samuel!
– O que queres? – respondeu o jovem com uma voz reprimida.  
Ela levantou de novo repetidas vezes a mão sobre o peito e ele repetiu – O que queres? Estou pronto a te obedecer.
– Pois bem – disse ela colocando sobre a testa do jovem o polegar e o dedo indicador de sua mão direita – penetra agora em meu coração e procura nele uma imagem.
O jovem inclinou a cabeça sobre o peito e parecia dormir profundamente. Depois uma convulsão violenta sacudiu seu corpo e seus lábios murmuraram um nome. Ela sorriu com tristeza olhando com ternura para o retrato que tinha em frente. Em seguida, segurando a mão do jovem que dormia:
– Samuel! – disse – penetre com teus olhos este imenso horizonte (e com sua mão apontou para o Norte) e procure aquele cujo nome acabas de pronunciar.
A cabeça do jovem dormindo caiu outra vez sobre o peito; sua respiração se tornou gradualmente cansada e um copioso suor molhou sua testa.
A mulher de pé e com os braços cruzados, seguia com um olhar tenaz e imperioso as emoções que, rápida e sucessivamente, se vislumbravam naqueles olhos fechados.
A hora, o lugar e os objetos que ali apareciam, contribuíam para dar a aquela cena um caráter verdadeiramente fantástico, e ao contemplar aquele ser frágil, dominado com uma influencia misteriosa por um ser mais forte, ao ver aquela mulher envolvida nas pregas de sua flutuante e vaporosa túnica, de pé com a mão estendida sobre a cabeça daquele homem submetido ao poder de seu olhar, terias acreditado ver uma maga celebrando os mistérios de um culto desconhecido.
A mesma convulsão veio interromper a imobilidade do jovem que dormia.
– Congele ai – exclamou.
– Onde?
– Os raios prateados da lua jogam com as ondas deste imenso rio que passa sua plácida corrente entre o bosque e uma cidade fantástica como num sonho febril. A seus pés, e preso por pesadas âncoras, um navio movido suavemente por uma frágil brisa envia até as folhas da margem oposta os reflexos de uma iluminação cheia de brilho. Sobre sua ampla coberta, adornada com verdadeiras e perfumadas grinaldas, cem lindas mulheres, vestidas de branco e coroadas de flores, se abandonam languidamente nos braços de seus companheiros em ardentes emoções da dança. Oh! Como são belos teus olhos! Pareceria que roubaram do sol dos trópicos seu deslumbrante fulgor.
– Mas ele, onde ele esta?
 – Oh! – replicou o jovem que dormia com uma voz suplicante – deixe me admirar o quadro magico desta dança sobre as aguas baixo um céu de fogo. Como são formosas! Tão formosas! Vejo ali uma que se separa deste encantado redemoinho. Se distancia em direção a proa com seu cavalheiro e inclinando-se sobre a borda estende a mão para mostrar lhe a tremula imagem das estrelas refletidas em agua profunda. Ah!

– Samuel – disse ela interrompendo, quando uma convulsão violenta contraiu repentinamente as feições imóveis do jovem que dormia – Samuel, o que você vê?
– É ele quem a acompanha.
– E por que tremes?
– Oh! – respondeu o que dormia com uma surda voz – não me perguntes... melhor que não saibas.
– Não importa: quero que digas. Diga!
Ele então abaixou a cabeça com uma resignação cheia de pesar mas ao falar utilizou uma língua estrangeira, talvez para que suas palavras soassem menos dolorosas ao coração daquela a quem obedecia com tão visível penar.
Enquanto falava, uma nuvem escureceu o rosto daquela mulher. Seus olhos brilharam como relâmpagos de uma tempestade e seus lábios murmuraram palavras confusas e inarticuladas.
Mas se acalmando de repente:  
– Samuel – disse – leia no coração deste homem.
O jovem se concentrou profundamente mais uma vez : parecia que seu espirito descera para um abismo.
Depois, seus lábios verteram lentamente como gotas de chumbo estas palavras:
– Ele ama aquela mulher.
Mas uma nova convulsão afogou suas palavras como se o tivesse ferido o mesmo golpe que ele acabara de desferir na alma daquela mulher.
Ela, no entanto, permaneceu imóvel e silenciosa; nem mesmo um musculo de seu rosto se contraiu; e se não fosse a extrema palidez que cobriu seu rosto, ninguém teria percebido a dor naquele coração de uma estranha fortaleza.
Passeou duas ou três vezes ao longo do quarto se aproximou do retrato,  contemplou por um longo tempo com um olhar indefinido, e em seguida, como se arrancasse uma recordação querida, levou a mão à testa , jogou para trás  seus cabelos, cobriu o retrato com um véu negro e caminhando para abrir a porta em frente àquela pela qual tinha entrado, regressou ao jovem que dormia estendendo a mão e  trazendo a de volta em sua direção, enquanto ele se levantava e seguia na direção que aquela mão indicava.
Quando cruzaram o umbral, a porta se fechou atrás dele e ainda escutei a voz daquela mulher que dizia:  
– Samuel, desperte!
Ainda a vi depois sentar ao pé da cama e esconder o rosto entre as mãos.
Não tinha mais nada a ver ou averiguar ali; a lamparina tinha apagado, eu já não via mais aquela mulher e permanecia ainda colado àquele postigo que me separava dela; o silencio reinava em torno; não obstante em meu cérebro ainda zunia um ruído tumultuado como aquele das ondas do mar em uma tempestade. Eram as batidas de meu coração, era uma raiva imensa, desesperada, que rugia em minha alma, era... eram os ciúmes, era que eu amava àquela mulher com o amor ardente que inspira o impossível; que a cobiçava para mim, enquanto era outro que possuía a sua alma.
A luz do dia, penetrando em seu quarto, mostrou que ela estava no mesmo lugar. Nem ela e tampouco eu tínhamos mudado de posição...
III
– Quem escuta, ouve seus males  – disse eu com o ar sentencioso de um confessor.
– Mas... você não escuta  – disse meu penitente interrompendo de improviso – Você não escuta?
  O que?
– O apito do trem. Hoje chega o vapor do Sul e devemos ter noticias importantes de Arequipa.
Disse e sem escutar meus pedidos, meus gritos, meus protestos e a formal ameaça de lhe negar a absolvição, o ímpio pegou seu chapéu e em seguida ganhou a rua, embarcando imediatamente para Islay de onde, dirigindo-se a Arequipa, lutou nas trincheiras no sete de março e livrando-se milagrosamente do garrote "libertador", passou ao Chile, onde contam que para não perder o costume, tomou parte ativa na revolução que pouco depois começou naquele pais. Quando a revolução fracassou, foi a Europa, acompanhou a Garibaldi em sua expedição a Sicília. Ele o seguiu e caiu com ele em Aspromonte, não morto, mas sim prisioneiro. Fugiu e agora anda perdido como uma agulha neste mundo de Deus.

Incorrigível conspirador! Que o guarde bem os céus e que um dia ele termine sua confissão e possamos saber, bela Cristina, o fim de sua recriminável e bem castigada espionagem.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

18 – Por que Lulu Bergantim não atravessou o Rubicom – J. C. Carvalho


José Cândido de Carvalho, escritor carioca, (1914 -1989), é na minha opinião o maior mini-contista do Brasil. Seu romance, “O Coronel e o Lobisomem”, merece destaque entre os grandes romances da literatura brasileira mas seus dois livros de mini contos “Por que Lulu Bergantim não atravessou o Rubicom” e o “Ninho de Mafagafes”, onde ele escreve sobre os "contados, astuciados, sucedidos e acontecidos do povinho do Brasil" são duas perolas que deveriam estar em qualquer estante, como o melhor entre os antídotos ao mal humor. Aqui segue o mini-conto que dá titulo ao primeiro livro.

Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon
José Cândido de Carvalho

Lulu Bergantim veio de longe, fez dois discursos, explicou por que não
atravessou o Rubicon, coisa que ninguém entendeu, expediu dois socos na
Tomada da Bastilha, o que também ninguém entendeu, entrou na política e foi eleito na ponta dos votos de Curralzinho Novo. No dia da posse, depois dos
dobrados da Banda Carlos Gomes e dos versos atirados no rosto de Lulu
Bergantim pela professora Andrelina Tupinambá, o novo prefeito de Curralzinho
sacou do paletó na vista de todo mundo, arregaçou as mangas e disse:

“Já falaram, já comeram biscoitinhos de araruta e licor de jenipapo.
Agora é trabalhar!”
E sem mais aquela, atravessou a sala da posse, ganhou a porta e caiu de
enxada nos matos que infestavam a Rua do Cais. O povo, de boca aberta,
não lembrava em cem anos de ter acontecido um prefeito desse porte. Cajuca
Viana, presidente da Câmara de Vereadores, para não ficar por baixo, pegou
também no instrumento e foi concorrer com Lulu Bergantim nos trabalhos
de limpeza. Com pouco mais, toda a cidade de Curralzinho estava no pau
da enxada. Era um enxadar de possessos! Até a professora Andrelina Tupinambá,
de óculos, entrou no serviço de faxina. E assim, de limpeza em
limpeza, as ruas de Curralzinho ficaram novinhas em folha, saltando na
ponta das pedras. E uma tarde, de brocha na mão, Lulu caiu em trabalho de
caiação. Era assobiando "O teu-cabelo-não-nega, mulata,
porque-és-mulata-na-cor" que o ilustre sujeito público comandava as brochas
de sua
jurisdição. Lambuzada de cal, Curralzinho pulava nos sapatos, branquinha mais que asa de anjo. E de melhoria em melhoria, a cidade foi andando na frente dos safanões de Lulu Bergantim. Às vezes, na sacada do casarão da prefeitura, Lulu ameaçava:

“Ou vai ou racha!”
E uma noite, trepado no coreto da Praça das Acácias, gritou:

“Agora a gente vai fazer serviço de tatu!”

O povo todo, uma picareta só, começou a esburacar ruas e becos de modo
a deixar passar encanamento de água. Em um quarto de ano Curralzinho já gozava, como dizia cheio de vírgulas e crases o Sentinela Municipal do "salutar benefício do chamado precioso líquido". Por força de uma proposta de Cazuza Militão, dentista prático e grão-mestre da Loja Maçônica José Bonifácio,
fizeram
correr o pires da subscrição de modo a montar Lulu Bergantim em forma de estátua, na Praça das Acácias. E andava o bronze no meio do trabalho de fundição,
quando Lulu Bergantim, de repente, resolveu deixar o ofício de prefeito. Correu todo mundo com pedidos e apelações. O promotor público Belinho Santos fez discurso. E discurso fez, com a faixa de provedor-mor da Santa Casa no peito, o
Major Penelão de Aguiar. E Lulu firme:

“Não abro mão! Vou embora para Ponte Nova. Já remeti telegrama
avisativo de minha chegada.”

Em verdade Lulu Bergantim não foi por conta própria. Vieram buscar
Lulu em viagem especial, uma vez que era fugido do Hospício Santa Isabel
de Inhangapi de Lavras. Na despedida de Lulu Bergantim pingava tristeza
dos olhos e dos telhados de Curralzinho Novo. E ao dobrar a última rua da cidade, estendeu o braço e afirmou:

“Por essas e por outras é que não atravessei o Rubicon!”


Lulu foi embora embarcado em nunca-mais. Sua estátua ficou no
melhor pedestal da Praça das Acácias. Lulu em mangas de camisa, de enxada na mão. Para sempre, Lulu Bergantim!

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

17 – Um incidente na ponte Owl Creek – A. Bierce.

Se tivesse que fazer uma lista dos dez maiores contos de todos os tempos certamente incluiria este “Um incidente na ponte Owl Creek” de A. Bierce (1842-1914). Primeiro por ser um conto perfeitamente estruturado: concentrado em um único elemento dramático, escrito com precisão e sem desperdícios ou digressões e coroado por um final inesperado. Segundo por que sempre admirei mais os escritores que recriam a realidade do que aqueles que apenas a descrevem. E terceiro, por mostrar com seu final que ainda que seja imensa nossa capacidade de sonhar, a realidade é, em ultima instancia, quem define os limites do destino.

Um incidente na ponte de Owl Creek
Ambrose Bierce

Um homem estava de pé sobre uma ponte férrea no Norte do Alabama, olhando para as águas que corriam ligeiras seis metros abaixo. Tinha as mãos às costas, os pulsos atados por uma corda. Outra corda fora enrolada em seu pescoço. Esta última estava amarrada a uma estaca sólida acima de sua cabeça e a ponta caía-lhe até a altura dos joelhos. Algumas tábuas soltas, colocadas sobre os dormentes que suportavam os trilhos da via férrea, sustentavam os pés do homem, assim como os de seus executores — dois paramilitares do Exército Confederado, liderados por um sargento que na vida civil talvez tivesse sido um sub-xerife. Sobre a mesma plataforma provisória, mas a uma certa distância, estava um oficial armado, com seu uniforme de graduado. Era um capitão. Em cada extremidade da ponte havia um sentinela segurando seu rifle em posição de "apoio", o que significa na vertical à frente do ombro esquerdo e com o cão apoiado ao antebraço atravessando o peito em diagonal — uma posição rígida e pouco natural, obrigando os soldados a permanecer numa postura muito ereta. Aparentemente, os dois não tinham obrigação de saber o que se passava no meio da ponte. Eles se limitavam a bloquear a passagem nas duas extremidades do caminho de pedestres que ladeava o pontilhão.
Para além de um dos sentinelas, não havia ninguém à vista. A linha férrea cruzava a floresta numa reta por quase cem metros, para em seguida desaparecer, numa curva. Com certeza havia um posto avançado mais adiante. A outra margem do rio era um campo aberto — uma colina suave, no alto da qual havia uma barricada feita com troncos de árvores, com seteiras para os rifles e um único canhoneiro do qual surgia a extremidade de um canhão de bronze, apontado para a ponte. Na metade da colina, entre a ponte e a fortaleza, estavam os espectadores — uma única companhia de infantaria perfilada, em posição de "descansar", a base dos rifles tocando o chão, os canos levemente inclinados para trás e apoiados ao ombro direito, as mãos cruzadas à frente das coronhas. Um tenente encontrava-se de pé à direita da fila, com a ponta de sua espada no chão e a mão esquerda repousando sobre a direita. Com exceção do grupo de quatro pessoas no centro do pontilhão, ninguém se movia. A companhia estava de frente para a ponte, observando-a na mais absoluta imobilidade. Os sentinelas, voltados para as margens do rio, poderiam ser confundidos com estátuas que adornassem o lugar. O capitão estava de braços cruzados, em silêncio, observando o trabalho de seus dois subordinados, mas sem fazer qualquer sinal. A morte é um dignitário que, ao ser anunciado, deve ser recebido com manifestações formais de respeito, mesmo entre aqueles que lhe são mais familiares. No código da etiqueta militar, o silêncio e a imobilidade eram formas de deferência.
O homem que estava para ser enforcado aparentava cerca de 35 anos. Era um civil, a julgar por suas roupas, que pareciam as de um fazendeiro. Tinha boa aparência — o nariz reto, a boca firme e uma testa larga de onde surgia o cabelo comprido e escuro, penteado para trás, passando por trás das orelhas e indo até o colarinho do casaco de trabalho, que lhe caía bem. Usava bigode e uma barba pontuda, mas sem costeletas. Os olhos eram grandes, cinza-escuros, com uma expressão gentil que dificilmente se poderia esperar de um homem cujo pescoço estivesse no laço de uma corda. Com toda certeza não era um assassino vulgar. O código militar, liberal, permite o enforcamento de toda sorte de indivíduos, e os cavalheiros não estão excluídos.
Assim que tudo estava pronto, os dois paramilitares, dando um passo para o lado, tiraram a tábua sobre a qual caminhavam. O sargento virou-se para o capitão, fez continência e colocou-se imediatamente atrás do oficial, que por sua vez afastou-se um passo. Tais movimentos deixaram o condenado e o sargento sozinhos de pé sobre as duas extremidades da mesma tábua, que se estendia por cima de três dos dormentes da linha férrea. A extremidade sobre a qual se encontrava o civil quase alcançava, mas não chegava a fazê-lo, um quarto dormente. Essa tábua estivera sendo mantida ali pelo peso do capitão. Agora, o que a mantinha ali era o peso do sargento. A um sinal do primeiro, este último daria um passo para o lado, a tábua daria um salto e o condenado despencaria pelo espaço entre os dormentes. O arranjo, por simples e efetivo, parecia confiável. O rosto do homem não estava encoberto, nem seus olhos vendados. Por um instante, ele olhou para o chão instável onde pisava e em seguida deixou que o olhar se perdesse na corrente d'água que passava lá embaixo, a toda velocidade. Uma tora de madeira boiando chamou sua atenção e seus olhos seguiram-na, rio abaixo. Parecia mover-se tão devagar, como se levada por águas indolentes...
Fechou os olhos tentando fixar os últimos pensamentos na mulher e nos filhos. A água, tingida de ouro pelos primeiros raios de sol, a bruma melancólica que recobria as margens rio abaixo, a fortaleza, os soldados, a tora de madeira — tudo distraía sua atenção. E agora ele se dava conta de alguma coisa nova, que surgia para perturbá-lo. Chocando-se com o pensamento de seus entes queridos, vinha um som que ele não conseguia nem identificar nem ignorar, um ruído agudo, nítido, metálico, como o som do martelo do ferreiro contra a bigorna. A ressonância era a mesma. O homem se perguntou o que seria aquilo e de onde vinha tal som, se de longe ou de perto — pois parecia as duas coisas ao mesmo tempo. Batia a intervalos regulares, mas num ritmo lento, como o dobrar dos sinos de Finados. Ele aguardava cada batida com impaciência e — sem que soubesse por quê — com apreensão. Os intervalos de silêncio pareciam cada vez maiores. E esses momentos de suspensão começavam a enlouquecê-lo. Embora cada vez mais espaçados, os sons cresciam em força e agudez. Feriam-lhe os ouvidos como a estocada de um punhal. Estava a ponto de gritar. O que ele ouvia era o tique-taque de seu relógio.
Abriu os olhos e viu novamente a água a seus pés. "Se eu pudesse soltar as mãos", pensou, "poderia afrouxar o laço e pular na água. Afundando, fugiria das balas e, nadando a toda velocidade, conseguiria chegar à margem, embrenhar-me na floresta e fugir para casa. Minha casa, graças a Deus, fica para além das linhas deles. Minha mulher e meus filhos estão na região que ainda não foi tomada pelos invasores.”
Enquanto esses pensamentos, aqui descritos em palavras, passavam pela cabeça do condenado, e mal acabavam de ser formulados, o capitão fez um sinal para o sargento. E o sargento deu um passo para o lado.

II

Peyton Farquhar era um próspero fazendeiro, de uma família antiga e altamente respeitada no Alabama. Sendo dono de escravos e, como todo dono de escravos, um político, era naturalmente a favor da Guerra Civil e ardorosamente devotado à causa do Sul. Por motivos de força maior, que não cabe aqui relatar, não pudera servir ao galante exército que lutaria nas desastrosas campanhas culminando com a queda de Corinto, e se irritava com isso, ansiando por externar suas energias, por viver a vida mais expansiva dos soldados, pela oportunidade de se destacar. Essa oportunidade, sentia, acabaria chegando, porque chega para todos durante a guerra. Enquanto isso, ia fazendo o que podia. Não se importava de desempenhar a mais humilde tarefa, desde que fosse para ajudar a causa dos sulistas, nem de se meter na mais perigosa das aventuras, desde que fosse coerente com o papel de um civil cujo coração era de soldado e que, de boa-fé, mesmo não sendo muito qualificado, concordava, ao menos em parte, com o ditado sabidamente infame segundo o qual na guerra e no amor tudo vale.
Certa noite, quando Farquhar e sua mulher estavam sentados no banco rústico junto à entrada do jardim, surgiu no portão um soldado de uniforme cinza que pediu um copo d'água. Foi com satisfação que a Sra. Farquhar foi buscá-lo com suas próprias mãos, muito brancas. O marido se aproximou do cavaleiro empoeirado e, ansioso, pediu notícias do front.
"Os ianques estão consertando as estradas", respondeu o homem," e estão prontos para um novo avanço. Já chegaram à ponte de Owl Creek, fizeram reparos e construíram uma barricada na margem norte. O comandante mandou espalhar cartazes dizendo que qualquer civil que bloquear estradas, pontes, túneis ou trens será sumariamente enforcado. Eu vi a ordem.”
"A ponte de Owl Creek é muito longe?", quis saber Farquhar.
"Uns cinquenta quilômetros.”
"E há soldados deste lado do rio?”
"Só um posto avançado menos de um quilômetro à frente, na estrada, além de um sentinela na ponta de cá da ponte.”
"E se um homem — um civil, especialista em enforcamentos — conseguisse passar pelo posto avançado e enganar o sentinela", disse Farquhar, rindo, "o que será que ele conseguiria? “
O soldado parou para pensar.
"Há um mês eu estava lá", respondeu. "E notei que a correnteza do último inverno tinha deixado muitas toras encalhadas no píer de madeira, na extremidade da ponte. Agora f está tudo seco e poderia queimar como uma tocha.”
A mulher já se encaminhava com a água, que o soldado bebeu. Em seguida agradeceu, cerimonioso, fez uma mesura para o marido e se foi. Uma hora depois, quando a noite já havia caído, ele voltou a cruzar a fazenda em direção ao Norte, de onde viera. Era um espião dos Confederados.

III

Assim que despencou da ponte, Peyton Farquhar perdeu os sentidos, como se já estivesse morto. Mas foi despertado desse estado — após o que lhe pareceu um tempo enorme — por uma dor fina na garganta, seguida de uma sensação de sufocamento. Uma agonia aguda, mortal, parecia espraiar-se do pescoço, tocando cada fibra de seu corpo e membros, Tais dores aparentemente corriam por linhas de ramificações bem definidas, martelando a uma velocidade inconcebível. Eram como rios de fogo pulsante que o queimassem inteiro. Quanto à cabeça, parecia-lhe completamente tomada — por uma congestão. Essas sensações não vinham acompanhadas de pensamentos. A parte intelectual de sua natureza se esvanecera. Tinha poder apenas para sentir, e o que sentia era tormento. Percebia um movimento. Envolto por uma nuvem luminosa, da qual ele agora era apenas o núcleo em brasa, oscilava sobre um arco imponderável, como se fosse imenso pêndulo. E então, de repente, de forma terrivelmente súbita, a luz que o cercava disparou para cima, com um gigantesco estrondo d'água. Um troar ameaçador atingiu-lhe os ouvidos e tudo foi escuridão e gelo. O poder do pensamento foi restaurado. Agora ele sabia que a corda se rompera e que ele caíra na correnteza. Mas não sufocava mais do que antes. A corda em torno de seu pescoço já o estrangulava, mantendo a água fora de seus pulmões. Morrer enforcado no fundo de um rio! A ideia lhe parecia ridícula. Abriu os olhos na escuridão e viu acima uma luminosidade, embora muito longe, inacessível. Continuava afundando, pois a luz tornava-se mais e mais fraca, até virar apenas um lampejo. Mas logo começou a crescer e a tornar-se mais brilhante, até que ele percebeu que retornava à superfície — e relutava em admitir isso, pois já sentia um certo conforto em estar no fundo. "Ser enforcado e afogado", pensou, "não é tão mau assim. Mas não quero levar um tiro. Não quero e não vou. Não é justo.”
Não tinha consciência do esforço que fazia, mas uma dor fina no pulso lhe dizia que estava tentando soltar as mãos. Concentrou-se naquela luta, como um errante admirando a proeza de um malabarista, sem muito interesse no resultado. Que esforço sensacional! Que força magnífica, sobre-humana! O empenho era impressionante. Muito bem! A corda soltou-se. Seus braços separaram-se, flutuando em direção à tona, as mãos como sombras de um lado e outro, que mal podia enxergar na luminosidade crescente. Ele as olhou com interesse renovado à medida que, primeiro uma, depois a outra, elas buscaram o nó que apertava seu pescoço. Afrouxaram-no, abrindo-o, as ondulações da corda lembrando as de uma cobra d'água. "Ponham-na de volta!", gritou para as mãos em pensamento, pois assim que o nó se desfez ele foi assaltado pela dor mais cruciante que jamais experimentara. O pescoço lhe doía horrivelmente. Seu cérebro estava em fogo. E o coração que antes batia manso de repente deu um salto, parecendo a ponto de sair-lhe pela boca. Todo seu corpo foi varrido e sacudido por uma angústia insuportável. Mas as mãos desobedientes não atenderam a seu comando. Batiam na água com vigor, em movimentos rápidos, para baixo, forçando-o rumo à superfície. Até que sentiu a cabeça emergir. A luz do sol cegou-o. Sentiu o peito expandir-se em convulsões e, em suprema agonia, seus pulmões sorveram uma enorme golfada de ar, que ele expeliu no mesmo instante, com um grito agudo.
Agora tinha total controle dos sentidos físicos. Na verdade, eles estavam extraordinariamente aguçados e em alerta. Diante da brutal agressão ao organismo, algo acentuara e refinara seus sentidos a ponto de eles lhe mostrarem coisas que antes não era capaz de perceber. Observava as ondas do rio junto a seu rosto, ouvindo o bater de cada uma delas. Olhava para a floresta além da margem e via árvore por árvore com suas folhas, assim como os veios em cada uma dessas folhas, Via até mesmo os insetos sobre elas: as cigarras, as moscas com seus corpos brilhantes, as aranhas cinzentas espalhando suas teias de um ramo a outro. Notava o prisma das cores nas gotas de orvalho sobre um milhão de lâminas de relva. E o zumbido dos mosquitos que dançavam sobre a tona, o bater das asas das libélulas, o choque das patas das aranhas-d'água, como remos que impulsionassem seus barcos — e tudo isso lhe soava claro como música. Lá se ia um peixe deslizando no fundo e ele podia ouvir o ruído de seu corpo fendendo as águas.
Chegara à superfície de frente para a correnteza. Por um instante, o mundo visível parecera girar a uma velocidade muito lenta, sendo ele seu ponto central. E ele via a ponte, a fortaleza, os soldados sobre a ponte, o capitão, o sargento, os dois paramilitares, seus executores. Via apenas suas silhuetas contra o céu. Gritavam e gesticulavam, apontando para ele. O capitão tinha empunhado a pistola, mas não atirara. Os outros estavam desarmados. Seus movimentos eram grotescos, terríveis, suas formas gigantescas.
De repente, ouviu um estampido agudo e um projétil atingiu a água a poucos centímetros de sua cabeça, borrifando-lhe o rosto. Veio um segundo estampido e ele viu um dos sentinelas com o rifle ao ombro, enquanto uma nuvem de fumaça azulada subia do cano da arma. Da água, pôde ver os olhos do homem na ponte encarando-o, por trás da mira. Notou que ele tinha olhos cinzentos e lembrou-se de já ter ouvido falar que olhos assim são os mais espertos e que homens de grande pontaria costumam ter olhos dessa cor. E, no entanto, aquele acabara de errar.
Um rodamoinho envolvera Farquhar e ele agora estava de lado para a ponte. De frente para a floresta que ficava na margem oposta à fortaleza. E o som claro, alto, de uma voz entoando uma melodia monocórdia, chegava a seus ouvidos vindo de trás, cruzando a água com tanta nitidez que sobrepujava todos os outros sons, até mesmo a batida das ondas em seu rosto. Embora não fosse soldado, ele já frequentara os acampamentos e conhecia o terrível significado daquele canto arrastado, entoado com força e deliberação. O tenente, na margem, fazia sua parte no trabalho da manhã. Ditas com toda a frieza, sem piedade — com uma entonação que era calma, serena, agourenta, mas que infundia tranquilidade na tropa —, a intervalos bem medidos, ele ouviu aquelas palavras cruéis:
"Atenção, companhia!... Preparar!... Apontar!... Fogo!”
E Farquhar mergulhou. Mergulhou o mais fundo que pôde. A água borbulhava em seus ouvidos como as vozes do Niágara e ainda assim ele ouvia o ruído surdo das rajadas. Ao retornar à superfície, pôde ver as cápsulas de metal, significativamente achatadas, que, brilhantes, desciam correnteza abaixo. Algumas chegaram a tocar-lhe o rosto e as mãos, depois se foram, seguindo seu curso. Uma delas alojou-se entre seu pescoço e a gola da camisa. Sentindo, com um arrepio, que ainda estava quente, atirou-a longe.
No instante em que chegou à tona, em busca de ar, notou que ficara muito tempo debaixo d'água. Encontrava-se muito longe rio abaixo — onde era mais seguro. Os soldados estavam quase acabando de recarregar as armas. Viu as varetas todas brilhando ao sol à medida que eram retiradas dos barris, viradas no ar e introduzidas nos soquetes. Os dois sentinelas dispararam de novo, por conta própria, mas sem sucesso.
O homem caçado observava tudo isso por cima do ombro. Nadava agora com todo o vigor, correnteza abaixo. Seu cérebro estava tão aguçado quanto seus braços e pernas. Raciocinava na velocidade da luz.
"O oficial", pensou, "não vai cometer um erro outra vez por excesso de zelo. Dá na mesma esquivar-se de uma rajada de tiros ou de um tiro só. Com certeza ele já deu ordens para que cada um atire à vontade. Deus me ajude, pois não vou conseguir escapar de todos eles!”
Foi sacudido por um choque na água a menos de dois metros de onde estava, seguido de um estrondo violento, que foi decrescendo como se ricocheteasse e cruzasse o ar de volta em direção à fortaleza, até morrer com uma explosão que fez todo o rio estremecer. Uma coluna d'água ergueu-se, encobrindo-o, e depois despencou sobre ele, cegando-o, sufocando-o. O canhão entrara no jogo. Ao sacudir a água que lhe encharcava a cabeça ouviu o zumbido da bala rompendo o ar acima dele, e em seguida seu impacto contra os galhos da floresta mais além, que se despedaçaram.
"Não vão fazer isso de novo", pensou. "Da próxima vez vão usar uma carga de balim. Preciso ficar de olho nesse canhão. A fumaça vai me alertar porque o estampido chega tarde demais. É posterior ao projétil. É uma arma e tanto.”
De repente, sentiu-se envolver por um rodamoinho, todo ele rodando e rodando como um pião. A água, as margens, a floresta, a ponte agora distante, a fortaleza e os soldados — tudo se confundia, num borrão. Os objetos eram perceptíveis apenas por sua cor. Traços circulares e horizontais de cor — era tudo o que via. Fora apanhado num turbilhão, girando e rodopiando a uma velocidade cada vez maior, que o deixava tonto, enjoado. Em instantes, foi atirado contra o cascalho ao pé da margem esquerda do rio —no lado sul — e atrás de uma ponta que o abrigava dos inimigos. A súbita parada e a aspereza do cascalho na palma da mão de repente o fizeram despertar, e ele chorou de alegria. Enterrou os dedos na areia, atirando-a sobre o próprio corpo enquanto agradecia em voz alta. Aquela areia era para ele como se feita de diamantes, rubis, esmeraldas. Tudo o que era belo parecia-se com ela. As árvores sobre a margem eram um gigantesco jardim. E ele notou que as plantas ali estavam compostas como se num arranjo, ao mesmo tempo que inalava seu perfume. Uma luz estranha, rosada, brilhava no espaço entre os troncos e o vento, em seus galhos, produzia a melodia de uma harpa. Já não queria fugir — estaria satisfeito em ficar naquele lugar encantador até ser recapturado.
Um zumbido e um martelar por entre os galhos, acima de sua cabeça, despertaram-no de seu sonho. O artilheiro frustrado fazia novo disparo a esmo. Farquhar pôs-se de pé e saiu correndo em direção à margem escarpada, penetrando na floresta.
Durante todo o dia caminhou, guiando-se pelo sol. A floresta parecia interminável. Em nenhum ponto encontrou uma só clareira, uma só trilha de lenhadores. Não sabia que vivia numa região de mata tão fechada. E havia nessa revelação qualquer coisa de sobrenatural.
Quando a noite caiu, estava exausto, faminto, com os pés feridos. Mas quando pensava na mulher e nos filhos, sentia-se encorajado a prosseguir. Finalmente deu numa estrada que o levou na direção que ele sabia ser a certa. Era larga e reta como a rua de uma cidade e contudo parecia não ter sido jamais trilhada. Não havia fazendas em suas margens, nem sinal de qualquer atividade. Nem mesmo o latido de um cão sugerindo que o lugar era habitado por humanos. Apenas o corpo negro das árvores formando uma muralha, de ambos os lados, desaparecendo em algum ponto no horizonte, como o desenho de uma lição de perspectiva. No alto, quando ele olhava através das copas das árvores, via o brilho de gigantescas estrelas cor de ouro, que lhe pareciam estranhas e agrupadas em constelações desconhecidas. Tinha certeza de que formavam um padrão cujo significado era secreto e maligno. E a floresta, de um lado e outro, emitia ruídos singulares, entre os quais — uma, duas, várias vezes — pôde distinguir sussurros numa língua que jamais ouvira.
Seu pescoço doía e ao passar a mão nele viu que estava horrivelmente inchado. Sabia que tinha um círculo escuro no lugar onde a corda o ferira. Seus olhos estavam congestionados. Já não conseguia fechá-los. A língua inchara de tanta sede. Procurou aliviar a febre botando a língua para fora por entre os dentes e buscando o contato com o ar frio. A relva macia cobrira de tal forma a estrada deserta que ele já não sentia o chão sob seus pés.
Com certeza, apesar de todo o sofrimento, adormeceu enquanto caminhava, pois agora via outro cenário — ou talvez tivesse acordado de um delírio. Está de pé diante do portão de sua própria casa. Tudo continua como ele deixou, brilhando com beleza à luz do sol da manhã. Deve ter caminhado durante toda a noite. Assim que empurra o portão e atravessa a calçada larga e branca, percebe um ondear de saias femininas. É sua esposa, parecendo tão fresca, tão calma e tão doce que desce os degraus da varanda para encontrá-lo. Ao pé do degraus ela para, esperando, com um sorriso de imensa alegria, com graça e dignidade incomparáveis. Ah, como é bela E ele corre, com os braços estendidos. Quando está a ponto de abraçá-la sente uma violenta pancada na nuca. Uma luz branca, capaz de cegar, explode à sua volta com um som que se assemelha ao tiro de um canhão — e depois é tudo escuridão e silêncio.

Peyton Farquhar estava morto. Seu corpo, com o pescoço quebrado, balançava lentamente de um lado para outro por entre os dormentes da ponte de Owl Creek.