sexta-feira, 15 de agosto de 2014

07 – O Limão – M. Kanjii

 Motojiro Kanjii nasceu em Osaka (Japão), em 17 de fevereiro de 1901. Aos 19 anos, foi diagnosticado com tuberculose e morreu da doença aos 31 anos. Tinha  21 anos quando escreveu este conto (talvez tenha sido a convivência com a morte que o fez perceber o poder explosivo da beleza e do brilho de um simples limão.) Seu trabalho apenas foi reconhecido após sua morte: além de Limão, outros de seus contos — Dias de inverno e Debaixo das cerejeiras — também se tornaram textos clássicos da literatura japonesa. Limão foi publicado na coletânea "The Oxford book of Japanese short stories", organizada por Theodore William Goosen e a tradução que se segue, e que eu mesmo fiz, foi publicada no Jornal Rascunho.

O limão
Motojiro Kanjii

(traduzido ao português por Marcelo Antinori a partir da versão inglesa traduzida do japonês por Robert Ulmer)
Uma nuvem pesada dominava meu espírito. A sensação não era de irritação ou tédio; parecia mais como se tivesse entrado em uma profunda ressaca depois de noites e noites bebendo muito. A tuberculose e o esgotamento nervoso não eram os culpados. E nem mesmo a minha assustadora dívida. Era apenas aquele peso indefinível. Me afastou da música e da poesia que tanto amei — se incomodava alguém para que me colocasse uma música, sentia a necessidade de partir depois de poucas notas. Tudo o que conseguia fazer era vagar sem destino pelas ruas.
Me sentia atraído por coisas que apresentavam um toque de beleza decadente. As vizinhanças decrépitas eram os lugares que preferia e dentro delas não eram as grandes ruas, impessoais, que me pareciam simpáticas, mas sim os becos sujos com aquelas roupas manchadas penduradas a secar e as trilhas de lixo atirado pelo chão. Espiar nas janelas dos quartinhos miseráveis que davam para os becos também me era prazeroso. Entre aquelas frágeis casas com paredes de barro decompostas, que o vento e a chuva em breve iriam devolver a terra, a força da vida apenas se sentia nas plantas, na surpresa inesperada do desbotar de um girassol ou de solitário botão de flor.
Às vezes, enquanto caminhava por aquelas ruas, tentava imaginar que escapara de Quioto para uma cidade distante onde ninguém me conhecia. Sendai talvez ou Nagasaki. Teria de ser um lugar tranquilo. Um quarto em um pequeno hotel, grande e vazio. Lençóis imaculados, o aroma da tenda contra mosquitos e um quimono de verão, recém-engomado. Poderia passar um mês deitado ali, sem pensar em nada. Sentia que se desejasse com muita força, poderia transformar o lugar onde estava naquele que imaginava… E quando as imagens se formaram, comecei a pintá-las, uma a uma, com as cores de minha preferência, até que elas pudessem ser sobrepostas àquelas vizinhanças dilapidadas. Então, e apenas então, podia sentir o prazer de perder de vista a minha real existência.
Eu também me confortava em admirar as caixas de fogos de artifício baratos. Alguns vinham alinhados em pacotinhos grosseiros vermelhos, púrpura, ouro e azul e tinham nomes como “Estrelas Cadentes do Templo Chusanji”, “Guerra de Flores” e “Pálidas Palmeiras”. Outros, conhecidos como “estalidos de rato”, eram montados em um catavento dentro das caixas. Coisas como estas atraíam a atenção.
Contas de vidro colorido eram tesouros para mim — bolinhas com desenhos de peixes e flores em relevo, contas de Nanking. Ficar rolando aquelas bolinhas dentro da minha boca dava-me um grande prazer, seu gosto tinha uma sutil e singular frescura. Quando criança, meus pais me chamavam a atenção por este tipo de comportamento. Agora, talvez porque o abatimento fizera estas doces memórias de infância ainda mais queridas, havia algo especialmente poético sobre a beleza daquela fresca e delicada sensação em minha boca.
Como você já deve ter percebido, eu estava completamente debilitado. E o fato de que aquelas pequenas coisas, ainda que ligeiramente, podiam tocar meu coração, fazia com que sua compra fosse um luxo necessário. Questão de alguns centavos — mas ainda assim, uma extravagância, um detalhe de beleza, que ainda podia excitar meus frágeis sentidos. Em resumo, um consolo natural.
Quando ainda estava bem, eu adorava passar meu tempo em lojas de departamentos, como a Maruzen, com suas prateleiras repletas de artigos importados. Garrafas vermelhas e amarelas de eau-de-cologne e eau-de-quinine. Frascos de perfume elegantemente decorados com relevos bem trabalhados, cor de âmbar e de jade. Cachimbos e canivetes, sabonetes e tabaco. Depois de uma hora de busca criteriosa, eu teria esbanjado na compra de uma lapiseira da melhor qualidade. Agora, contudo, Maruzen se transformara em um lugar opressivo e asfixiante. Os livros, os estudantes, os caixas — todos eles me apavoravam como se fossem cobradores fantasmas.
Uma manhã — eu estava me hospedando em alojamentos de amigos, mudando de um para outro — meu anfitrião naquele dia foi para a universidade, me abandonando em seu quarto vazio. Não tive outra escolha que retomar meus passeios. Uma força qualquer foi me levando de uma pequena rua a outra, me fez parar em frente a uma loja de doces, depois me levou até uma mercearia onde passei um bom tempo olhando para o peixe seco e o tofu em conserva. Dali, fui vagando pela Teramachi até a Avenida Nijo, parando finalmente em frente a uma loja de frutas e verduras.
Talvez eu deva apresentar este estabelecimento, já que era a minha loja favorita entre todas. Na aparência, não se destacava, ainda que representasse bem aquela beleza especial que este tipo de loja possui, mais do que qualquer outro lugar que tivesse visto. Suas frutas estavam dispostas em uma banca inclinada de madeira negra laqueada e lascada na ponta. Tinham sido arrumadas de uma forma que sua cor e volume pareciam congelados no tempo e no espaço, como um grupo de dançarinos que tivesse olhado para a cabeça da Medusa e se transformado em pedra. Mais ao fundo na loja, os vegetais estavam empilhados em prateleiras cada vez mais altas. As folhas da cenoura pareciam radiantes e os legumes e os vegetais brilhavam com gotas de água.
A tenda era ainda mais bonita à noite. Inundada com a luz de suas vitrines, Teramachi é uma rua cheia de vida, ainda que bem mais tranquila que suas equivalentes em grandes cidades como Tóquio e Osaka. Ainda assim a vizinhança daquela loja em particular era curiosamente escura. Na verdade, estava na esquina da melancólica Avenida Nijo, mas isso não explicava por que aquela área tão vizinha à Teramachi era tão pobremente iluminada. Se aquela área estivesse mais clara, entretanto, duvido que tivesse me encantado tanto. O toldo saltava adiante como se fosse a aba de um chapéu puxada para cima dos olhos. (Isso não é exagero poético — o lugar realmente dava vontade de sair gritando “olha para aquela barraca com seu bonezinho abaixado”.) Sem luzes ao lado para competir, e com a escuridão acima, a fileira de lâmpadas elétricas penduradas por baixo do toldo banhava os produtos como uma brilhante chuva de verão. Vista da rua, onde os focos descobertos provocavam espirais de luz que penetravam em meus olhos, ou da janela do segundo andar do Café do outro lado da rua, havia poucos lugares em Teramachi que me inspiravam tanto como aquele.
Naquele dia em particular, eu tomei a decisão inesperada de fazer uma compra ali. Uma coisa rara estava à venda — limões. Óbvio que limões não eram incomuns em lojas mais elegantes, mas aquela barraca dificilmente poderia ser considerada como acima da média e por isso raramente exibia aquele produto, ou pelo menos eu não tinha notado antes. E, meu Deus, como sou loco por aqueles limões: sua cor, como um punhado de puro “amarelo-limão” espremido de um tubo de tinta; sua forma, uma circunferência perfeitamente comprimida… Decidi comprar um. Depois, voltei a vagar pelas ruas de Quioto. Caminhei por um bom tempo. Me sentia inesperadamente feliz, como se toda aquela nuvem pesada que sentia havia tanto tempo sobre mim tivesse ficado mais leve no momento em que senti nas mãos a minha nova aquisição. Um paradoxo incompreensível talvez, mas verdadeiro — minha teimosa melancolia tinha sido enganada por uma simples fruta. Como é estranho o espírito humano!
A frescura do limão superava qualquer descrição. Naquele momento, minha tuberculose tinha piorado a ponto de que estava permanentemente febril. Acho que podia mostrar a meus amigos e conhecidos quão doente estava simplesmente por um aperto de mãos, já que a minha estava sempre mais quente. Talvez por causa daquele calor, eu sentia que a frescura do limão estava penetrando através da minha palma e refrescando todo o meu corpo.
Várias e várias vezes, levei a fruta até o nariz para sentir seu perfume. Imagens da Califórnia, sua origem provável, vinham a minha mente entremeadas de trechos do clássico chinês O mercador de frutas que eu estudara na escola — “invadindo o nariz” era a frase que lembrava. E quando enchia meus pulmões com aquele perfume, um jato de sangue aquecido parecia correr pelo meu corpo, despertando minha vitalidade. Pensei que nunca antes tinha respirado tão profundamente.
A ideia de que na simples sensação de frescura, textura, perfume e forma eu tinha me deparado com o que estava procurando por tanto tempo parece agora estranha. Mas naquele momento eu sentia vontade de gritar de cima do teto das casas.
Meus passos ficaram mais animados, avancei com excitação crescente e mesmo orgulho, me imaginando, em alguns momentos, como um poeta elegantemente vestido que caminhasse pomposamente pelos bulevares. Observei o limão bem de perto, em contraste com o meu lenço sujo, e depois contra o meu capote, para sentir melhor como suas cores refletiam sua textura, e depois apertei em minhas mãos alertando a todos de sua perfeição. Era isso que tinha me cansado de procurar, o peso perfeito, a somatória absoluta de todas as coisas boas e bonitas — este pensamento me pareceu fascinante. Considerando tudo, eu estava abençoadamente feliz.
Como cheguei lá eu não sei, mas subitamente me dei conta de que estava em frente da loja de departamentos Maruzen. Ainda que a estivesse evitando, naquele momento não senti nenhuma dúvida em cruzar a porta e entrar. Vamos tentar, pensei, e caminhei altivo por suas portas.
Curiosamente, por alguma razão, aquela sensação de bem-estar que preenchia meu coração começou a se esvanecer no momento em que entrei ali. As prateleiras de perfume e tabaco me deixaram frio. Eu podia sentir minha depressão levantando sua cabeça outra vez, e pensei que talvez fosse devido ao cansaço depois da longa caminhada. Me dirigi à seção de livros de arte. Será que ainda tinha energia suficiente para levantar, ainda que fosse apenas um, aqueles livros pesados? E ainda assim consegui baixá-los da estante e abri-los, um após outro. Isso no entanto foi tudo o que fiz — não desejava examiná-los com atenção. Como que enfeitiçado, eu ia compulsivamente baixando um livro atrás do outro; dava uma rápida olhada, e passava ao próximo sem retornar nenhum à estante. A ideia de continuar fazendo aquilo me parecia insuportável. O último livro que escolhi era um dos meus favoritos, uma enorme encadernação dourada com os trabalhos de Ingres. E era o mais pesado de todos. Maldição! Senti aquela fadiga debilitando meus braços enquanto revirava aquela pilha de livros que tinha criado. Sentia que minha depressão tinha retornado com força total.
No passado, eu folheava com prazer livros como aqueles, saboreando o estranho contraste entre suas lindas ilustrações e a decoração monótona da loja. Por que eles não me atraíam mais?
Assustado eu me lembrei do limão guardado na manga do quimono. E se tentasse colocá-lo no alto daquela confusa coleção de cores, que será que aconteceria?
Aquela agradável delicada explosão de entusiasmo que tinha sentido antes retornou. Empilhei os livros ao acaso formando uma torre, derrubei com força e empilhei outra vez. Novos livros das estantes foram adicionados àquela pilha, removidos e depois substituídos por outros, assumindo a forma de um castelo de sonhos, primeiro vermelho e depois azul.
Finalmente estava terminada. Controlando o palpitar do meu coração, coloquei cuidadosamente o limão no topo daquele castelo. Era uma combinação perfeita.
Enquanto admirava meu trabalho, silenciosa e serenamente o limão sugou todas aquelas cores envolventes para dentro de sua circunferência. Dentro daquele ambiente bolorento da Maruzen aquele ponto sozinho parecia produzir uma estranha tensão. Permaneci ali alguns momentos, apenas olhando para aquela torre.
Subitamente fui surpreendido por outra ideia insólita: por que não deixar o limão ali onde ele inocentemente descansava e caminhar para a saída.
Um estranho sentimento cresceu em mim. “Devo? Por que não!” Furtivamente deixei o edifício.
Lá fora, na rua, aquele estranho sentimento levou-me a rir. Que tipo de vilão era eu que tinha deixado aquela cintilante bomba dourada armada entre as estantes da Maruzen. Se aquela bomba realmente explodisse com violência no coração da seção de livros de arte em dez minutos, seria emocionante.
“E então.” Continuei entusiasmado perseguindo aquela visão, “nada restara daquele lugar opressivo além de um monte de poeira”.
Saí caminhando pelas ruas de Kyogoku decoradas com aqueles grotescos cartazes coloridos de cinema.

* Traduzido ao português por Marcelo Antinori a partir da versão inglesa, traduzida do japonês por Robert Ulmer.


Um comentário:

  1. Lindo conto! Será que o ser humano precisa estar muito debilitado para poder perceber a beleza em todas as coisas, desde as mais simples?

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